“Laudate Deum”: Nova exortação questiona “paradigma tecnocrático” e convoca à mudança “radical” de comportamentos

 

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No seu grito para salvar o Planeta, Francisco destaca urgência de “transição para energias limpas” e de “redesenhar o multilateralismo” na política internacional

O Papa denuncia na sua nova exortação Laudate Deum, divulgada hoje, o que denomina como “paradigma tecnocrático”, que coloca na base da “degradação ambiental”.

“Os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas o problema maior é a ideologia que está na base duma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço”, aponta Francisco, na ‘Laudate Deum’ (Louvai a Deus), sobre o tema da ecologia integral, que visa dar continuidade à reflexão da encíclica ‘Laudato Si’ (2015).

O documento alerta para avanços tecnológicos e da inteligência artificial que se baseiam na “ideia dum ser humano sem limites”, observando que “nem todo o aumento de poder é um progresso para a humanidade”.

“É preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que geramos estão a virar-se contra nós mesmos”, adverte.

“Não é de estranhar que um poder tamanho em tais mãos seja capaz de destruir a vida, já que a matriz de pensamento própria do paradigma tecnocrático nos cega, não nos permitindo ver este gravíssimo problema da humanidade atual”.

FB de Dora Nicolau

O Papa propõe como alternativa ao “paradigma tecnocrático” a ideia de que o mundo “não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites”, convidando a aprender com as culturas indígenas.

“O paradigma tecnocrático destruiu esta relação saudável e harmoniosa”, advertiu.

A nova exortação aponta o dedo ao “marketing” e à “informação falsa” que rodeiam algumas intervenções com impacto negativo no ambiente.

“Foi precisamente a soma de muitos danos considerados toleráveis que acabou por nos levar à situação em que nos encontramos agora”, assinala.

“A lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade”.

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A Laudate Deum contesta “ideias erradas” sobre a chamada “meritocracia”, que o Papa coloca ao serviço do “domínio daqueles que nasceram com melhores condições de progresso”.

Francisco convida a criar uma “nova cultura”, com “uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável, ligado ao modelo ocidental”.

“O simples facto de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos”, acrescenta.

O texto é publicado a 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis, santo que inspira o nome da exortação, e aponta à  COP 28,  no Dubai, desafiando responsáveis do mundo a tomarem “decisões históricas”, promovendo uma transição urgente para “energias limpas” e abandonando os combustíveis fósseis.

“Não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorizados de forma permanente. Esta Conferência pode ser um ponto de viragem”, escreve.

Francisco apela à assunção de “fórmulas vinculantes de transição energética que tenham três caraterísticas: eficientes, vinculantes e facilmente monitoráveis”.

A COP28, acrescente, deve “iniciar um novo processo que seja drástico, intenso e possa contar com o empenhamento de todos”.

A 28ª conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas  vai ser realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro, na Expo City, Dubai.

O Papa adverte que “companhias petrolíferas e do gás têm a ambição de realizar novos projetos para expandir ainda mais a sua produção”.

“Adotar uma atitude renunciante a respeito da COP28 seria autolesivo, porque significaria expor toda a humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos das alterações mudanças climáticas”, sustenta.

Para Francisco, sem “mudanças substanciais”, a humanidade corre o risco de ficar bloqueada na “lógica do consertar, remendar, retocar a situação”.

“Supor que qualquer problema futuro possa ser resolvido com novas intervenções técnicas é um pragmatismo homicida, como pontapear uma bola de neve”, prossegue o documento.

Duma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses económicos. Admitamos, finalmente, que se trata dum problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis”.

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Em vésperas da COP28, Francisco passa em revista os “progressos e falhanços” das Conferências sobre o Clima, sublinhando que “as propostas tendentes a garantir uma transição rápida e eficaz para formas de energia alternativa e menos poluente não conseguiram fazer progressos”.

O Papa desafia a comunidade internacional a “redesenhar o multilateralismo”, face à situação de “fragilidade da política internacional”.

“A globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos que levarão a um multilateralismo ‘a partir de baixo’ e não meramente decidido pelas elites do poder”, realça.

A exortação alude a uma crise da “velha diplomacia”, que, se for capaz de se reformular, “deverá ser parte da solução, pois a própria experiência de séculos não pode ser descartada”.

Para Francisco, é necessário “reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, sobretudo para consolidar o respeito dos direitos humanos mais elementares, dos direitos sociais e do cuidado da casa comum”.

“Este mundo que nos acolhe está a esboroar-se e talvez a aproximar-se dum ponto de rutura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida de que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias”, escreve Francisco, num texto que dá continuidade à reflexão da encíclica ‘Laudato Si’ (2015).

Segundo a Laudate Deum que cita dados científicos recentes, a humanidade enfrenta “uma aceleração insólita do aquecimento”.

“A origem humana – ‘antrópica’ – da mudança climática já não se pode pôr em dúvida”, sustenta o pontífice.

Francisco aponta o dedo à “reduzida percentagem mais rica do planeta”, que polui mais do que os mais pobres.

“Provavelmente, dentro de poucos anos, muitas populações terão de deslocar as suas casas por causa destes fenómenos”, adverte.

O documento responde a objeções contra a transição para formas renováveis de energia, pelo seu custo económico, afirmando que “milhões de pessoas perdem o emprego devido às diversas consequências da mudança climática”.

O Papa apela, por isso, a uma redução do uso de combustíveis fósseis e ao desenvolvimento de formas de energia mais limpa, para travar o “crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa”.

“É real a possibilidade de alcançar um ponto de viragem”, aponta, admitindo que há danos “irreversíveis”, pelo menos durante centenas de anos, como “o aumento da temperatura global dos oceanos, a acidificação e a redução do oxigénio”.

Francisco mostra-se preocupado com o facto de “tantas espécies estarem a desaparecer e a crise climática estar a pôr em perigo a vida de tantos seres”.

“As outras criaturas deste mundo deixaram de ser nossas companheiras de viagem para se tornar nossas vítimas”, denuncia.

A nova exortação é publicada, simbolicamente, a 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis, apelando a um “percurso de reconciliação com o mundo”.

“A cosmovisão judaico-cristã defende o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um ‘antropocentrismo situado’, ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas”, assinala o pontífice.

Francisco publicou a sua encíclica ‘Laudato si’, um documento social e ecológico, em 2015; cinco anos depois (18 junho 2020), o Vaticano apresentou um “manual” de aplicação deste documento, com mais de 200 recomendações em defesa do ambiente e da vida humana.

(Com Ecclesia e Vatican news)

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