Pelo padre José Júlio Rocha
No número 2646 da revista “E” do Expresso (14 de julho), Ricardo Araújo Pereira escreve, na última página, uma interessante crónica sobre o humor e a “ética de cancelamento” que, segundo ele, se pratica em Portugal a respeito da liberdade da arte, do humor e da liberdade de expressão em geral. O motivo foi um trecho humorístico em desenho animado, da autoria de Cristina Sampaio, que mostra um polícia a disparar na carreira de tiro. Os alvos são um boneco representando um branco e outro boneco representando um negro. No fim, o boneco branco levou um ou dois tiros. O negro ficou cravejado. Claríssimo.
As reações não se fizeram esperar. A PSP queixou-se, o problema atingiu as cúpulas da RTP e chegou ao Governo. As queixas abundaram, o que incomodou sobremaneira o maior humorista português que, como sabem, é defensor acérrimo da liberdade do humor. Para ele, há em Portugal um ambiente cultural onde existe o direito de não ser ofendido: “o que é ofensivo deve ser proibido”, ironiza Ricardo. E eu concordo com a sua ironia.
Já não concordo com o facto de ele ter ficado ofendido porque a PSP ficou ofendida. Pela simples razão de, se alguém tem o direito de me ofender, eu, no mínimo, tenho o direito de ficar ofendido. E tenho o mesmo direito da artista Cristina Sampaio quando manifestar o meu desagrado. Ao que parece, para Ricardo Araújo Pereira, a liberdade de expressão termina quando o humorista publica a sua vinheta. Se alguém se queixar ou responder, já é o lápis azul, a censura, um cheiro a Antigo Regime ou coisa parecida. A questão é que, de liberdade em liberdade de expressão, pode-se permitir tudo até chegarmos aos tiros uns nos outros… Presumo que há de existir uma linha vermelha, que não se deve ultrapassar, antes de nos chegarmos a matar uns aos outros.
Tudo isso vem a lume por causa da Jornada Mundial da Juventude. E aqui Portugal tem mostrado, pela enésima vez, que é um país pequeno em vários sentidos. Os nossos fazedores de opinião, que falam nas televisões, escrevem nos jornais ou postam nas redes, são de um pessimismo quase sombrio. Está quase sempre quase tudo escuro: ele é a TAP, ele é o desgoverno o Governo, os incêndios, as cidades inabitáveis e caras, a seca, os professores, os médicos, os transportes públicos, o SNS, a educação, a pobreza. Portugal, na visão dos que dizem que sabem, é uma catástrofe. Vemos, é certo, alguns debates interessantes e construtivos. O resto é uma chuva de negativismo.
A JMJ veio confirmar estas expetativas. As críticas já vêm de longe, bem acompanhadas pela indiferença generalizada dos portugueses, que só acordaram quando o custo do palco principal foi divulgado. Carmo e Trindade desabaram e ai de quem se pusesse a defender a importância das Jornadas! Depois foi a cidade de Lisboa, bloqueada nestes dias, com os residentes sujeitos a torturas para levarem uma vida normal. Clara Ferreira Alves atendeu mais ao Parque Eduardo VII, que ia ficar sujo, estragado, miserável, depois dos energúmenos dos jovens de todo o mundo o pisarem nas assembleias. O incomensurável Malato voltou à carga com o abuso de menores. A avenida Almirante Reis tornou-se a “rua da contestação”. Claro que concordo com a contestação, exatamente como concordo com a contestação à contestação, que é o que estou a fazer.
E, cereja no Bolo, o artista Bordalo II, figura por demais desconhecida, teve o seu momento de glória ao estender um “tapete da vergonha”, com notas de 500 gigantes, pelo palco da polémica abaixo. Viralizou. A notícia mais badalada das Jornadas, depois do palco, foi o tapete do Bordalo, para quem a Igreja é uma instituição maligna e podre, a quem o Estado não devia subsidiar em prol da separação Estado/religião, e que vem tirar milhões do nosso bolso com a vergonha dos ajustes diretos.
Foi isso que os portugueses disseram e ouviram.
Que pensar dos jovens de hoje? Em França milhares de carros, casas, caixotes do lixo são brutalmente incendiados por jovens desesperados ou bárbaros, o que diz muito sobre o estado de alguma juventude de hoje. No mediterrâneo eles morrem à procura de viver. Nos Estados Unidos, de vez em quando, matam-se a tiro. Na Ucrânia morrem debaixo das bombas ou em cima das minas. Em África morrem de fome e na América do Sul de sede de justiça. A paisagem é a de uma juventude sem rumo nem futuro, e este é o pior sinal dos tempos.
Com este cenário assustador em pano de fundo, as Jornadas Mundiais da Juventude são a maior manifestação de paz que o mundo conhece. Temos o infinito dom de acolher jovens de todas as latitudes geográficas, de todas as culturas, etnias, convicções políticas e até religiosas, unidos em mais de um milhão, apelando, enquanto pessoas do futuro, para valores como a fraternidade, a paz, o cuidado da Terra, a tolerância, para além da fé, todos valores que uma pessoa normal, crente ou ateia, religiosa ou laica, sonha. Centenas de catequeses e formações espalharam-se pelo País. Estes jovens, ao contrário de muitos, muitíssimos, pensam. É aqui que se constrói o futuro. Este é um momento ímpar, único, um momento de esperança, palavra tão rara entre portugueses. Mas ficámo-nos pelo altar, pelos ajustes diretos (presumo que os primeiros da história de Portugal) e o tapete da vergonha, de que não sobrou nem um metro para os desmandos da TAP, para os grandes bancos que lucraram, no último semestre, três mil milhões à custa do aumento das taxas de juro e da falência das famílias, ou até para o próprio Bordalo II, que já conseguiu, do Estado, mais de 700 mil euros em ajustes diretos para si e para a sua arte… Vê-se o argueiro é no olho do outro.
Acresce que quem aglomera toda esta fauna de juventude é um homem chamado Francisco. E Francisco não é um homem de paz, é o Homem da Paz. Ninguém, no atual mundo onde arrastamos os pés, tem a estatura moral do papa Francisco. É um exemplo e um símbolo, um ícone incontornável do nosso tempo. Um inspirador. A sua figura é sagrada, emana uma força que ninguém saberá esmiuçar.
Portugal era o País dos três “F”. Fado e Fátima mantêm-se à tona. Quando vier o futebol, a grande aposta cultural deste País que nem sabe ler, já ninguém se lembrará do Papa Francisco. As contratações do Benfica e os penáltis do Taremi regressarão ao seu lugar de excelência.
Triste.
*Este artigo foi publicado no Diário Insular desta sexta-feira, na rubrica Rua do Palácio.