We’ll Always Have Paris, disse Bogart em Casablanca

 

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo padre José Júlio Rocha

A França será, num médio prazo, o primeiro país da Europa ocidental a dizer adeus àquilo a que chamamos “democracia”, termo que identifica uma forma de governo demasiado frágil para se manter por muito tempo. O “Fim da História” que Fukuyama propalava como sendo a perfeição, o último estágio do progresso humano, afinal é mais um princípio de retrocesso. Eventualmente as democracias não passarão, a médio prazo, de vagas instituições, que fizeram o seu tempo, destruídas pelos próprios democratas, porque a democracia é autofágica, permite o descontentamento, o descontentamento gera a revolta, a revolta gera a revolução e a revolução porá todas as coisas no seu lugar, como sempre foram, à exceção do formoso século XX: autocracias, ditaduras, plutocracias, oligarquias, tudo o que, de verdade, dá resultado, porque a democracia é uma coisa demasiado complicada, requer eleições, referendos, maiorias, consensos, e tudo isso atrasa o que se quer fazer, seja guerra, seja paz, sejam prisões ou torturas, sejam mortes ou limpezas étnicas.

O assassínio de Nahel desencadeou uma onda de violência brutal em França a que já estamos, pelo menos desde a Revolução Francesa, acostumados. Hoje, se Macron der um espirro em lugar indevido, catorze automóveis serão incendiados em Paris. Que o diga a proposta do presidente francês de aumentar a idade da reforma de 62 para 64 anos: meses de violência, distúrbios, manifestações catastróficas, motins, mortes. E ainda não parou essa algazarra. França está a destruir-se.

A morte de Nahel provocou nos bairros populares de Paris e de muitas outras cidades gaulesas, uma onda de indignação que gerou violência, destruição e morte por toda a França. O país está quase em estado de guerra, tal é a virulência dos ataques, a ferocidade do ódio, os carros e casas incendiados, as montras destruídas, os negócios vandalizados, políticos ameaçados e feridos. A França é um dos países mais ricos e, ao mesmo tempo, mais violentos do mundo. Porquê?

Mas quem era Nahel, a infeliz vítima do tiro que explodiu a França? Um miúdo, de origem magrebina, de 17 anos, que conduzia num país onde a carta de condução só é permitida aos 18 anos. O carro que conduzia não condizia com ele, estudante que já tinha deixado de estudar, com 12 processos-crime em cima de si. O automóvel, um Mercedes AMG de 400 cavalos e, pelo menos, 50 mil euros, ia em declarado excesso de velocidade numa linha BUS. Parado pela polícia, a única solução era fugir mais uma vez. Carregou no acelerador e o agente da polícia disparou. É conveniente dizer que o agente assassino tinha um currículo irrepreensível. Foi acidente? Foi de propósito? Esperemos que a justiça decida. Mas o tumulto social e a pressão sobre a justiça podem levar a que este homem passe o resto da vida atrás das grades. O currículo irrepreensível do agente faz-me pensar sobre o motivo principal da violência e da revolta: o racismo e a xenofobia das forças de segurança. Temos de aceitar, obviamente, que existe um clima que leva muitos agentes de forças de segurança a extremarem-se politicamente. Mas não era o caso deste homem, ao que as informações indicam. A pergunta impõe-se: porquê a França, pioneira da justiça, dos direitos humanos, das democracias, da liberdade, igualdade, fraternidade, se está dizimando lentamente, numa guerrilha urbana quase constante, numa vontade indomável de destruição que assusta, neste momento, toda a Europa democrática?

Para além de ser um caldo étnico indecifrável, a França tem uma tradição de violência. Quase sempre viveu em guerras, imensas vezes fomentou conflitos, é uma mistura de etnias milenares, de culturas paradoxais, de ódios da “província” a Paris. É a mãe da mãe de todas as revoluções, aquela que abalou, como nunca outra, o destino do mundo; é a pátria das aventuras e crimes de Napoleão; é a nação da guilhotina, da violência da Comuna, de quase todos os grandes nomes da arte do século XIX; é a nação do Maio de 68, com todas as suas virtudes e tragédias. É a terra onde os carros ardem por um motivo qualquer.

Os manifestantes são, na esmagadora maioria, jovens. Jovens e desesperados, engaiolados em guetos sem futuro e sem esperança, selvas de cimento nas franjas pobres das grandes cidades. A França nunca soube – ou nunca quis – integrar os imigrantes. Quem foi de cá para lá nos meados do século XX saberá o peso e a crueza da palavra “bidonville”, os tugúrios lamacentos e sujos dos bairros de lata – literalmente de lata – em que centenas de milhares de portugueses se massacraram para melhorar a vida e a esperança do regresso a um Portugal bem melhor do que aquele que deixaram. Eram matéria de consumo, carne para canhão. Nenhum esforço, por parte das autoridades, de integração cultural, linguística, educativa, o que quer que fosse.

É quase isso o que se passa hoje nos bairros assustadores onde predominam os muçulmanos, autênticos guetos onde a doença do radicalismo – também porque existe um chauvinista racismo – prolifera como mosquitos em pântanos. Marselha é uma cidade sitiada, vi-o eu, com os meus próprios olhos, o medo estampado nos rostos de uns e de outros.

É o medo. É o medo que impera em França, na Europa, no Mundo. O medo é muito perigoso, é o pai de quase todas as tragédias. Sim o medo.

Marine Le Pen é quem virá a seguir.

Scroll to Top