Epístola à amizade

Pelo padre José Júlio Rocha

Angra

Hoje, 21 de junho de 2023

Estimados amigos Pedro e Fernando.

Espero que estas linhas vos encontrem bem. Deu-me hoje no parafuso para escrever a vocês umas palavras mais saudosas, já que estais tão longe. É verdade que o tempo já não é o que era, podemos pegar no telemóvel e disparatar umas coisas, podemos conectar-nos via qualquer coisa em que apareça a cara do outro a falar no ecrã, de vez em quando podemos ver-nos na proximidade do cara-a-cara, que as viagens estão baratas para os residentes nos Açores. Mas apeteceu-me escrever à moda antiga, porque as palavras de uma carta escrita têm outra dimensão, o que é escrito permanece infinitamente mais do que é apenas falado. É por isso que todo o homem que é homem deve escrever um livro, fica um bocadinho mais eterno. Ou ter um filho, eterniza-se nele. Ou plantar uma árvore, cria o futuro. O falar, o dizer é só presente. E eu quero encontrar-vos no passado, por isso escrevo à moda do passado.

Por aqui, véspera de festas de São João d’Angra, os dias estão grandes como nunca, mas um bocadinho escuros, feitos de uma humidade triste e peganhenta, não raras vezes acompanhada pela incómoda morrinha, típica deste tempo de meados de junho, a que chamamos os nevoeiros de São João.

Foi aqui, em Angra, que te encontrei pela primeira vez, ó Pedro, descias tu de um desses barcos de cruzeiro entre ilhas, na tua pele escura do sol, descendo da amurada do barco, olhámo-nos ainda a milhas um do outro eu já sabia que eras tu quem eu devia esperar, e tu sabias quem era eu que te ia esperar. 1996? Os padres conhecem-se ao longe… Voltei a encontrar-te em Roma, aí sim, a caminho de uma grande amizade. Parecias um adolescente de olhos serenos, cara de traquina sem remissão, gozão, pica-miolos, psicologia daqueles miúdos que tocam a uma campainha desconhecida e fogem, sempre a rir, nunca te vi verdadeiramente chateado.

Naqueles idos de setembro de 2001, chegaste uma semana depois de mim ao Colégio Português em Roma, Fernando, Calado, como todos te chamavam, Zitto, chamava-te eu. Foste-me anunciado como um homem perigoso… “hás-de ver quando o Calado chegar”. E então tu chegaste, transportando a tua barba “a tre giorni”, esse nariz adunco de judeu trasmontano, e eu, que já estava com medo de ti, perdi o medo logo à primeira vista. Trazias uma sabedoria ancestral dos homens de Miguel Torga, duros como o granito por fora, almas brancas por dentro.

E, de repente, éramos amigos de infância. Éramos amigos para sempre, que esta coisa da verdadeira amizade é sempre para sempre. Éramos completamente padres, enviados a Roma a estudar, um açoriano, um portuense, um bragantino, três portistas, coincidência, no mínimo, desenfastiada, já que não discutíamos futebol, apenas falávamos dele, e bastantes alegrias lá vivemos, como quando agarrei a tua irmã, ó Pedro, e quase a lancei ao teto da sala de televisão do colégio, quando o Derlei marcou, aos 115 minutos, o golo que deu a vitória ao Celtic, na final sevilhana da Taça Uefa. Nisto de futebol, ó Pedro, eras um craque, quando, aos sábados, jogávamos, eu sempre contra ti, já que eu era mais ou menos mestre à baliza mas passei muitas vergonhas contigo, pica-miolos que te punhas a rir dos meus desesperos de cada vez que eu ia ao fundo da baliza. Tu, ó Calado, desculpa, mas tinhas dois pés bem esquerdos e eu tive a honra de nunca te ter visto dar um pontapé numa bola…

Era no Goose que púnhamos as contas em dia. Era o nosso café gótico de Santa Cruz de Coimbra, o Martinho da Arcada ou o Nicola de Lisboa, a Brazileira no Porto. Era o refúgio dos poetas, o tabernáculo dos boémios, o esconderijo dos aventureiros. Aí rimos ou chorámos, desenvolvemos uma amizade absolutamente natural, acompanhada por uma “bionda” ou uma “rossa”, que, por sua vez, acompanhavam uma “caprese”, uma “buscaiola”, uma “quatro stagioni”, umas risadas ou umas conversas demasiado sérias em qualquer outro lugar.

“Maria!” gritavas tu, ó Pedro, quando, uma ou duas vezes por semana, fazíamos a nossa corrida ao Gianicolo, eu, pesadão, a arfar atrás de ti, tu, autêntico “Speedy Gonzalez” a cortar caminho. “Maria!”, gritavas bem alto e fugias, quando passávamos diante da velha “Maria das Bênçãos” e ela olhava de dentro da loja para o caminho e só me via a mim, a passar mais aquela vergonha, sem conseguir deixar de rir perante o espanto da senhora, com um declarado desejo de te dar um carolo, e tu fugias à minha frente, puto traquina que nunca deixaste de ser.

Nunca me ri como quando ri contigo, Pedro, naquele dia em que decidimos, nas férias, visitar o Calado a Bragança, viajando pela autopista de las Rías Bajas, Galiza. Nessa viagem, perto do lago Sanabria, tive um ataque de riso que te obrigou a parar o carro e a deixar-me sair, com dores nas ilhargas de tanto rir. Ri-me de ti: eis a vingança. Mereceste-a.

A tua casa em Bragança, Calado, foi, muitas vezes, um lugar de paz, na torrefação de agosto ou no gelo de dezembro. Foi, durante tempos, lugar de peregrinação da nossa amizade. Nós é que sabemos, caro irmão, como é que o melhor amigo de um padre só pode ser um padre.

Escrevo-vos esta carta, amigos, porque hoje celebro trinta e um anos de vida sacerdotal. Fui ordenado presbítero exatamente à mesma hora que o Calado era ordenado diácono. Coisa mais linda.

Lembrei-me de vocês. Era convosco que queria partilhar este dia, esta data, esta alegria de ser padre e dar a vida por um nome: Jesus.

Com amizade.

*Esta carta foi publicada esta sexta-feira no jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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