Pelo padre José Júlio Rocha
Estou a imaginar meia dúzia de homens à porta da barbearia, isto há mais de cem anos, aquela porta com degrau alto, na esquina da casa do ti Benjamim que dava para a Canada do Biscoito. Era a barbearia do meu bisavô. Os homens todos descalços, todos de casaco puído, todos de chapéu menos o barbeiro e o cliente que devia estar na cadeira, ainda com metade da barba por fazer, a toalha enrolada ao pescoço, estou a imaginar. Cabeças à porta da barbearia, outros do lado de fora, espanto na cara de todos. Estava a passar, pela primeira vez na história, pela fragorosa ladeira de terra e pedras que descia a Fonte do Bastardo, o primeiro automóvel que alguma vez tinha passado por ali. Um carro sem cavalos! E lá ia descendo a viatura, pum, pum, pum, aos saltos e à incrível velocidade de vinte e poucos quilómetros por hora. A Fonte do Bastardo parou.
Nessa barbearia, anos mais tarde, já meu avô pontificava, juntavam-se homens de várias idades. Ali falava-se. O tio Urbino, o homem sábio da terra na primeira metade do século XX, trazia de vez em quando o jornal para lá e lá o lia, de fio a pavio, para espanto dos ouvintes que, iletrados, tinham ali uma janela para o mundo. Falava-se da Guerra, de Hitler e de Churchill, das obras no Campo, o lugar onde se estava a construir, nas Lajes, um aeroporto para os americanos. O tio Urbino assustava-se com a invasão comunista da Europa, como naquele dia de 1956, quando a União Soviética entrou por Budapeste adentro, qualquer dia chegava a Lisboa e os ouvintes, conscientes de que essa coisa do comunismo trazia consigo o fim do mundo, alarmaram-se como o tio Urbino. Os comunistas eram homens que não se confessavam.
As barbearias sempre foram os “mentideros” preferidos do povo. Ali se falava de tudo, tudo se discutia. As opiniões mais bárbaras eram por lá derramadas, as mais equilibradas lá defendidas, falava-se do tempo e das colheitas, do futebol e da guerra, dos vizinhos e daquela mulher sem vergonha que se atreveu a descer a Fonte do Bastardo vestida com calças! Não se falava mal de Salazar.
Meu bisavô, José da Rocha, manco de uma perna, fundou a barbearia, que deixou em herança ao filho único, meu avô, José da Rocha. Os três filhos de José da Rocha viraram todos barbeiros, inclusivamente o mais velho, também José da Rocha. O último José Rocha da família sou eu. Não segui o destino dos meus antepassados mas tenho dois irmãos que o seguiram, se bem que a saga de barbeiros da minha família vai terminar nesta geração.
O último José da Rocha barbeiro ainda corta cabelos, aos 84 anos, e ainda, graças a Deus, vende saúde. Já não é o que era, mas como sempre gostou do seu trabalho, daquele ambiente, daquele serviço, lá continua, mais para passar o tempo e encontrar velhos amigos do que propriamente por outras razões. Sempre gostou do que fez.
15 de Junho de 2005 foi o dia do funeral de Álvaro Cunhal. A barbearia, já há muitos anos na Rua de Jesus, Praia da Vitória, fervilhava. Pelo ecrã da televisão passavam imagens das celebrações, laicas, com personagens de todos os quadrantes e momentos solenes. Como sempre nas barbearias, toda a gente tinha a sua opinião. Meu tio e padrinho, o tal José da Rocha, lá ia cortando os cabelos, quase sempre de costas para o ecrã, sem nunca pronunciar palavra, apenas perguntando ao cliente como queria o corte. “Não concordava com a sua política, mas fez bem a Portugal”, dizia-se do defunto. “Não era do meu partido, mas lutou contra Salazar”, afirmava-se. “Nunca gostei muito dele, mas…”. E meu padrinho calado, concentrado nos golpes da tesoura. “Grande Álvaro Cunhal!” Excelente político!”. “A democracia ficou mais pobre.” José da Rocha, nem pio. A televisão mostrou então o féretro a entrar pelas portas de vidro que lavavam ao crematório. Álvaro Cunhal ia ser cremado. É então que, perante o silêncio geral dos presentes na barbearia, se ouve a voz, calma e solene, distinta, de meu tio José da Rocha: “Larguem-lhe vocês o lume!” Ainda hoje me rio a bandeiras despregadas dessa sentença.
Sempre me lembro de meu padrinho como um homem de trabalho, simples e serviçal, um homem bom. Um desgosto atravessou-lhe a vida: tem um coração enorme de pai mas não teve filhos. E despejou toda a sua paternidade sobre nós, os sobrinhos que moravam na porta ao lado.
Aqui há uns anos, a esposa, Lúcia, adoeceu. Um problema na boca adivinhava gravidade. Estava eu na sacristia, a preparar a missa, e José da Rocha entra com um papel na mão. Estava assustado, olhos vermelhos, medo no olhar. O papel tinha o resultado dos exames dela. “Tem aí alguma coisa de mal?” Esperou a minha resposta como quem espera a voz de Deus. O papel tinha três itens e dois diziam “negativo”. O terceiro, em palavras difíceis, lavrava a sentença que meu tio mais temia: cancro. Não fui capaz de lhe dizer, não tive forças, disse que não percebia bem, que o médico havia de explicar melhor. E lá partiu o José, com a alma a abanar, mais inquieto do que antes. Graças a Deus ela ficou curada, mas esse tempo foi um calvário para ele.
Agora José vive a sua velhice pacatamente. Parece sempre bem-disposto e conciliado com a vida. Não falta à missa de domingo, pudera! Um sobrinho a celebrar a missa, com as suas homilias que lhe sabem sempre a mel; outro sobrinho a reger o grupo coral que, para ele, se deve comparar ao coro da Capela Sistina. E emociona-se, que isto da idade também traz lágrimas. Tem um orgulho sem medida nos sobrinhos. É isto que acontece a quem nasceu para ser pai, mesmo que não tenha tido filhos.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.