Pelo padre Teodoro Medeiros
A colheita japonesa, mesmo só nos últimos anos, tem revelado qualidade e abundância assinalável: Koreeda, Takashi Miike, o agora famoso Hamaguchi e aquele que nos traz aqui hoje, Kiyoshi Kurosawa, a não confundir com o clássico do mesmo nome. E este novo Kurosawa manifesta uma capacidade rara para a estória familiar e a crítica social.
A “Sonata de Tóquio”, de 2008, é um filme forte mas concentrado, enriquecido pela indecisão em assumir-se como uma crítica ao capitalismo, drama doméstico, alegoria existencial, ou poesia pura. Sendo despedido da sua firma, o patriarca de dois filhos e esposa reage como se nada tivesse sucedido: sai de casa à mesma hora, vestido a rigor, e regressa no horário estabelecido, construindo uma mentira insustentável. O pano de fundo é a crise de 2008.
A alegria dos miseráveis é terem companheiros, como dizia o ditado latino, e é assim que este homem cedo se aproxima de outras vítimas do mesmo mal. Eles recorrem à caridade para ter almoço; o telemóvel que toca automaticamente para simular agitação profissional; o convite para jantar em casa e discutir supostos problemas de trabalho (com um oportuno momento de desleal humilhação).
Vai-se acentuando o desgaste humano de Sasaki: torna-se mais rígido, curvado e zanga-se mais facilmente. É um homem que vai perdendo dedos e anéis: a mentira corrói precisamente o que ele queria preservar, a sua autoridade no círculo familiar. Porque afinal, no caso dele como no dos seus colegas de não trabalho, nunca conseguiram enganar ninguém.
E então, quando tudo falha, Sasaki e a esposa, de forma independente, chegam à conclusão que dariam tudo para poderem recomeçar de novo, ter a possibilidade de falhar menos numa nova tentativa, uma oportunidade para aprender a estar vivo. Até agora, isso foi-lhes negado e talvez seja esse o sentido da insistente imagem do emaranhado de fios elétricos perto da casa deles (há uma teia que os prende e escraviza).
Alguns elementos mais estranhos parecem favorecer uma leitura simbólica: o filho mais velho que supera a sua simpatia pelos americanos; as clandestinas aulas de piano do mais novo; o envelope cheio de notas caído na casa de banho ou o atropelamento de Sasaki. É possível lê-los como uma denúncia da ordem mundial e dos seus enganos. Salva-se certamente o facto de que se foge ao truque óbvio e o espetador sente-se livre na sua decisão.
A maturidade do novo Kurosawa é fascinante: o filme passeia com pé ligeiro sobre estes temas pesados, arrancando daí pequenos momentos humorísticos do princípio ao fim, mantendo um tom concentrado mas despretencioso e evitando o vício em que tantos caem, de pregar com insistência as soluções propostas. Aqui não existem vilões, só seres humanos e as suas contingências.
Estes são personagens vencidos, esmagados, habitando os túneis de Tóquio com a clandestinidade das lesmas: um horizonte é algo que desconhecem, dificuldade contra a qual a esposa luta na parte final. Serão eles vítimas do capitalismo ou da imagem social a que tentam corresponder? Seja como fôr, a redenção chega sobre a forma do nascer do sol, do desprendimento e da música.