Por Carmo Rodeia
Não sou a maior fã de procissões e tenho dificuldade, desde pequena, em me incorporar nelas. Ainda tentaram que eu fosse vestida de anjo, de Nossa Senhora, mas, na verdade, nunca gostei de “atuar” e quem me conhece sabe como tenho dificuldade em assumir um papel que não condiga comigo.
Isto não quer dizer que não respeite as procissões e não participe quando é necessário. Gosto por exemplo de participar na Procissão do Senhor Santo Cristo incorporando-me como peregrina, acompanhando a imagem pelo coração de Ponta Delgada, naquela mole imensa de gente que o faz anonimamente, procurando um encontro, um consolo. São dois corações que se juntam…
Também nunca gostei de ver a procissão passar, aquela coisa de nos colocarmos de parapeito a ver passar os peregrinos, como se estivesse a ver passar um cortejo alegórico…
Lembro-me sempre da música interpretada por João Villaret, que o meu pai entoava quando a mãe dizia: “Joaquim, vens à procissão de Nossa Senhora da Conceição e ele respondia-lhe: Tocam os sinos na torre da igreja, Há rosmaninho e alecrim pelo chão. Na nossa aldeia que Deus a proteja! Vai passando a procissão” e logo entoava uma das estrofes finais, “Pelas janelas, as mães e as filhas, As colchas ricas, formando troféu. E os lindos rostos, por trás das mantilhas, Parecem anjos que vieram do Céu!, acrescentando da sua lavra: “pois, pois, logo se vê se irei ou se ficarei a ver”. Talvez tenha herdado dele esta minha como que aversão às procissões.
Não sendo adepta confessa reconheço, no entanto, nelas um significado profundo para os fiéis.
Há, desde logo, um sentido simbólico de caminhar juntos com uma finalidade religiosa, unindo a oração e o movimento, exprimindo o sentido dinâmico da Igreja em marcha, ou os caminhos internos da conversão ou da festa. A procissão, como “caminhar com outros”, de um lugar a outro, manifesta claramente a vontade comum de avançar para uma meta.
Na Bíblia têm especial significado as grandes marchas do Êxodo, também a subida de Jesus para Jerusalém, à qual Lucas dá tanta importância e, em concreto, a sua entrada na cidade santa, já na preparação da sua Paixão.
Ao longo do ano, são muito expressivas as procissões como as que vemos na Quaresma em cada domingo, com as imagens do Senhor dos Passos; ou a de Domingo da Paixão ou de Ramos, celebrando a entrada de Jesus em Jerusalém; a de Quinta-Feira Santa, levando solenemente o Santíssimo para o lugar da Reserva, para a comunhão de Sexta-Feira Santa, ou a da Sexta-Feira Santa para adorar a cruz ou ainda a da Vigília Pascal, seguindo o Círio, símbolo de Cristo Luz…
Em todas elas, estou certa, a participação de cada cristão significa uma homenagem e um reconhecimento público a Jesus, a Nossa Senhora ou aos santos que são carregados nela. A manifestação privada da fé passa a ser pública e as ruas convertem-se em igrejas.
Todas as procissões seguem uma estrutura muito marcada. Nada é improvisado e, ainda que as imagens sejam o eixo central do cortejo, são os penitentes que vão estruturando a procissão.
Hoje, ao ler o Expresso Curto, feito pela Eunice Lourenço, deparei-me com um livro que ela invocou na rubrica “o que ando a ler” e que também adquiri recentemente num alfarrabista do Chiado, zona de Lisboa sobre a qual tanto escreveu, e que “me foi apresentado” por um sacerdote amigo, de Lisboa, por ser um dos homens que contribuiu em Portugal para introduzir no país a obra de Tintin, do belga Hergé, de quem terá sido amigo pessoal e que terá conhecido aquando dos seus etudos na Universidade católica de Lovaina.
O padre Abel Varzim foi deputado na Assembleia Nacional na legislatura de 1938/1942, ficando célebre o “Aviso-Prévio” que ali apresentou em 17 de fevereiro de 1939, sobre os Sindicatos Nacionais, em que criticava a organização corporativa, mencionando a ação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, e nomeadamente a sua ineficácia em muitos aspetos fundamentais. Foi pároco da freguesia da Encarnação, sofrendo a partir de então perseguições, difamações e mentiras, por defender as vítimas da prostituição e denunciar a autêntica escravatura que aí tinha lugar.
O testemunho escrito em “Procissão dos Passos – Uma vivência no Bairro Alto”, o livro referido e citado pela editora do Expresso, revela a importância e o alcance da sua ação apostólica.
Morreu em 1964. Eu ainda não era nascida, mas há pouco tempo à conversa com o tal sacerdote de Lisboa, que com ele conviveu fiquei com curiosidade de conhecer tal figura da Igreja, que teve também um empenho muito grande em criar a Rádio Renascença. De vez em quando percorro alfarrabistas e lá encontro algumas preciosidades, muitas delas que acabo por oferecer. Foi o caso deste livro.
O padre Abel Varzim tinha da Igreja a ideia de que servir os outros, amar os outros era o caminho da evangelização.
A propósito das procissões dos Passos escreveu, no tal livro, “Não gostei da procissão! (…) de que serve seguir na procissão, vestir opas negras, empunhar lanternas uma vez por ano, se não acompanharmos a procissão de todas as horas, em que Jesus passa no meio de nós, humilhado e abatido até ao pó da terra, não em imagem de madeira ou de pedra, mas em carne palpitante, sofredora e sangrenta, pelas ruas da cidade, pelas vielas dos bairros, pelas portas dos hospitais e das prisões, pelas nossas portas? Cristo continua habitando entre nós, mas não o reconhecemos, Contentamo-nos, por isso, com a nossa presença na procissão das imagens, que é representação e espetáculo, mas não é Paixão”.
O serviço na Igreja, para ter uma dimensão evangélica, tem de ser realizado segundo o exemplo de Jesus, com a sua solicitude, o seu cuidado e a sua preocupação junto dos mais próximos.
Não sei se estamos a conseguir. Se estivéssemos, porventura não teríamos 1/3 de pobres nos Açores, 3000 famílias a depender da Cáritas, 4.526 cidadãos a receber apoio para habitação, 34% dos quais jovens, e por aí fora…Este é porventura o maior desafio desta Quaresma. Para que a Páscoa seja para todos.