Por volta das calendas de 1999 encontrava-me em Fátima, numa sala, na companhia de cerca de cem padres, a escutar atentamente um ancião pequenino.
Os padres eram, como eu, assistentes do Movimento dos Cursilhos de Cristandade de todo o país. E o ancião pequenino era nem mais nem menos do que Eduardo Bonnin, fundador do Movimento, espanhol de Palma de Maiorca e dono de um sorriso que, não podendo caber na boca, lhe saía aos magotes pelos olhos fora. Esses olhos azuis falavam como as estrelas em noite perfeita, as mãos eram lentas e calmas em gestos que faziam companhia às palavras. A curva dos ombros não adivinhava só a idade: parecia que ele carregava às costas uma boa maquia de felicidade amadurecida, pronta a ser entregue. Uma medida de felicidade, que Tonino Guerra traduziu como “o ar é aquela coisa ligeira, que está à tua volta e que fica mais luminosa quando sorris”. Olhar para o ancião levava-nos, de certa forma, a pensar, quase compulsivamente, sobre a felicidade.
De entre muitos assuntos que falámos surgiram as idosas questões acerca das divisões na Igreja, e tal e coisa… Sobre isso, a resposta dele: “Só conheço dois tipos de cristãos: os cristãos-gatos e os cristãos-cães”. Antes da explicação da metáfora, a assembleia de padres – eu incluído – gargalhou placidamente. Depois da explicação, a assembleia começou a cozer em lume brando. Acho que, desde essa altura, ainda estou a cozinhar a explicação de Bonnin: a um gato, desde que tenha ao pé de si a comida, a cama e a areia, pouco lhe importa onde e como está o dono. A um cão pouco importa onde vai comer dormir ou a que árvore vai alçar a perna: o importante é estar com o dono. Ponto.
Todos nós, padres, entendemos logo, sem rodeios nem vírgulas, a metáfora. O dono era Jesus. O resto eram contas para a nossa consciência.
Desde então – ou, melhor, desde sempre – me inquietam as verdadeiras razões de ser cristão ou padre. E há imensas razões: consoladoras, convidativas como casas de verão perto de praias à beira-mar. Há razões altivas como castelos medievais sólidos sobre penhascos. Há razões belas como pinturas de Fra Angelico ou Caravaggio. Há razões poderosas como tronos e dominações, principados e potestades. E há razões falsas, que são todas as que acabei de dizer. Tenho para mim, e peço desculpa a quem discordar, que a única razão é Jesus. E é extraordinário e assustador concluir que a minha vocação se resume ao facto de Jesus precisar de mim, aqui, na Igreja. Que o único lugar onde devo estar se chama Jesus. É importante perceber que Jesus – estranhamente – é um lugar, lugar nómada, sem pedra onde reclinar a cabeça, e é nesse lugar que devo dormir.
Estamos a viver a Semana dos Seminários, que alerta a Igreja para a necessidade de vocações sacerdotais. Sincera e seriamente: ninguém ganha nada com o facto de ser padre. E é isto que faz da vocação sacerdotal uma aventura tão única e extraordinária que muito poucos a conseguem contar. Ou compreender.
Pe Júlio Rocha