Comentário a João 2:13-22
Dedicação da Basílica de São João de Latrão
uma situação muito atual
Se estivermos atentos numa Igreja, olhando os que saem e entram, fiéis ou turistas, os seus gestos e rituais, apercebe-se de algo estranho. Quem entra pela primeira vez normalmente aprecia as talhas douradas, a pedraria trabalhada, as imagens sagradas, o órgão e os vitrais, os candelabros e os círios, os tapetes e as flores.
Os da casa entram com mais naturalidade, fazendo vénias e genuflexões a um dos altares frontais, acendendo velas naturais ou eletrónicas, deixando flores ou promessas. Muitas vezes encontram-se mesas para venda de postais e livros, pagelas e medalhas… Amiúde fala-se alto dentro da Igreja, sendo cantarolar um outro hábito. Até há quem fume no guarda-vento, especialmente quando chove.
Poucos são os que se dirigem para diante do sacrário, ficando em silêncio perante o Deus encarnado feito Pão da Vida, preocupado com a nossa fome espiritual e material, suscitando no nosso espírito a Sabedoria de uma vida mais justa e solidária.
a estrutura do templo
As Igrejas cristãs seguiam o modelo artístico e arquitetónico do Templo de Jerusalém, concebido, por sua vez, segundo os moldes dos templos antigos, nomeadamente o egípcio, como se depreende pela descrição do «novo» templo de Ezequiel.
Essa estrutura compreende, na «Casa de Deus», duas partes: a assembleia e o santo dos santos. A assembleia sagrada, liderada pelos sacerdotes, encontra-se numa espaçosa superfície, cuja cúpula, representando o firmamento do céu, era sustentada por colunas, em forma de palmeiras; este local era usado para ritos litúrgicos e para atividades comerciais de foro cultual.
Correspondente ao sacrário, o santo dos santos, em local mais elevado e de acesso vedado, continha a imagem da divindade, se o culto fosse icónico, ou simplesmente encontrava-se vazio, no culto anicónico, em que Deus era tido por irrepresentável, dada a sua invisibilidade.
O lugar da assembleia designava-se por «hierón» (ἱερόν); o santo dos santos, «naós» (ναός).
um jogo de palavras
Jesus, como qualquer pessoa piedosa, inflamou-se com as atitudes de desrespeito no templo, nomeadamente o seu uso para fins económicos – câmbios, venda de animais para os sacrifícios, encaminhamento das vítimas para negócios de carne e peles…
Os judeus perguntaram-lhe por que motivo expulsava os vendilhões e os negócios daquele local, o templo, ou, melhor, a zona da assembleia sagrada («hierón», v. 14). Jesus respondeu: «Derrubai este templo («naón») e eu o levantarei em três dias.» (v. 19)
Os judeus não se aperceberam de que Jesus desviou a atenção do edifício total («hierón») para «o santo dos santos» («naón»), outrora ocupado pela entretanto desaparecida Arca da Aliança, estrado do Deus invisível. Afirmaram que tinha sido construído em 46 anos; Jesus afirma que pode levantá-lo, o «naón», «o santo dos santos», em três dias.
do material para o espiritual
Jesus abstrai-se do templo de pedra e foca-se no templo espiritual, representado agora pela sua própria pessoa. Ele será morto, mas em três dias ressuscitará. Com essa comparação, afirma, por um lado, que todas as construções, físicas e espirituais, podem ser destruídas; por outro, porém, que as espirituais renascem mais depressa e eficazmente.
Costumamos ser abalados por factos e acontecimentos que destroem o templo mais sagrado do nosso interior. Mas em Cristo é possível renascer «em três dias», com relativa rapidez (Ef 2:6). Por um momento, vamos abaixo; mas, uma vez assimiladas as lições, é possível regressar à vida, com mais sabedoria e força.
É importante investir em infra-estruturas pastorais, que servem os propósitos da evangelização, especialmente da promoção humana. Tudo isso exige muito tempo, esforço e dedicação. Mas a construção, em comunhão com Cristo, de «infra-estruturas» espirituais revela-se como mais eficiente, na medida em que faz com que cada um, munido de um templo interior, possa tornar-se autónomo e construir a própria vida, familiar e laboral.
Ricardo Tavares, In A Crença, 07.11.2014
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