A que distância estamos?

Pelo Padre José Júlio Rocha

Éramos mais de noventa padres, reunidos numa sala, nos idos de Junho de 1999, já lá vão 23 anos. Uns mais aperaltados do que outros, conversava-se em voz baixa, tagarelava-se amigavelmente, estávamos em Fátima.

A razão daquele encontro tinha a ver com uma figura mítica do cristianismo da segunda metade do século XX: Eduardo Bonnín. Muitos já ouviram falar dele. Eduardo Bonnín, já na casa dos oitenta, era uma figura baixa e magra, calvo e com uns olhos que falavam mais de felicidade dos que muitos discursos. Olhos azuis, pequeninos, intrinsecamente sorridentes, que falavam mais do que a boca, olhos que riam de amizade, olhos que inspiravam paz. Os padres presentes eram todos, de alguma forma, representantes diocesanos do Movimento dos Cursilhos de Cristandade, cuja fundação acontece no fim dos anos quarenta, em Palma de Maiorca, pela mão, precisamente, de Eduardo Bonnín. Era um encontro histórico para mim, que já há anos vinha ouvindo falar de tal personagem, com fama de santidade, aquele que conhecia melhor do que ninguém os meandros do Movimento.

Começámos por fazer muitas perguntas técnicas mas ele não estava para aí virado. Como leigo a pregar a padres, ele bem sabia que nós, seguros da nossa doutrina e por vezes com tentações farisaicas, precisávamos de nos sentar na assembleia e ele no púlpito, nem que fosse por uma ou duas horas. Veio então a pergunta sobre as divisões entre padres e leigos no seu papel no Movimento.

Bonnín apanhou a deixa e contou-nos a parábola. Disse mais ou menos isto: “Só conheço uma divisão dentro da Igreja: é aquela que separa os cristãos gatos dos cristãos cães.” Murmúrios e sorrisos, cadeiras a mexer, sussurros. Bonnín continuou: “Um gato, desde que tenha a sua comida prontinha para comer, a sua caminha no seu lugar e a areia para as necessidades, está bem, independentemente do dono. Ao contrário, o cão não se importa onde e o que vai comer, onde é que vai dormir ou em que árvore vai fazer as suas necessidades. A única coisa que lhe importa é estar ao pé do dono.” (Quem tem gatos sabe que não é bem assim, mas esse é o estereótipo popular). Gargalhada geral de desassossego entre nós, padres. Bonnín queria dizer que, para o verdadeiro cristão, o mais importante não é o lugar que ocupa na Igreja, que o dono disto tudo não é outro senão Jesus Cristo e que ser cristão é caminhar com Jesus num processo contínuo de conversão interior.

Essa história fez-me lembrar outra, mais antiga, de um jornalista da Capital que, a meados dos fogosos anos setenta, decidiu sair à rua e fazer um inquérito com uma só pergunta: “Quem é Jesus para ti?” Num artigo, ele referiu apenas duas respostas. A primeira foi de um bispo: “Jesus é o Filho de Deus feito homem que morreu para nos salvar.” Resposta imaculada. A segunda foi de um transeunte que, por acaso, encontrou numa rua de Lisboa: “Jesus? Fomos muito amigos, fomos íntimos. Mas a minha vida deu umas reviravoltas que me custaram muito e, ofendido, deixei de falar com Ele. Mas sabe uma coisa? Estou cheio de saudades. Qualquer dia faço-Lhe uma visita porque preciso do Seu abraço.” Vamos comparar as respostas? Talvez não seja preciso…

Estas duas histórias podem ter alguma coisa a ver com a caminhada sinodal da Igreja neste triénio 2021-2023. O que o Papa quer não é outra coisa senão fazer a Igreja toda chegar à conclusão de que, ou caminhamos juntos ou corremos o risco de escorregar devagarinho, como está acontecendo, para uma divisão quase irremediável no seio da Igreja, à semelhança de países como os Estados Unidos ou o Brasil. Quando o nosso olhar crítico se dirige apenas para o outro lado, o lado que não é nosso, a conversão interior entra em rota de colisão com o nada. O que o Papa Francisco pede é que olhemos para nós próprios, para a nossa condição de caminhantes, peregrinos, e, ou caminhamos juntos ou perdemos Jesus, como quando José e Maria saíram de Jerusalém separados e acabaram por perder Jesus no Templo.

O Documento de Trabalho para a Etapa Continental é um texto que resume todos os textos finais dos inquéritos de quase todas as conferências episcopais do mundo. É um instrumento de trabalho e não é mais do que isso. Há quem tenha a tentação de pensar que aquele é o documento final do Sínodo. Não é. É o resultado de uma profunda e longa auscultação do povo de Deus, desde os bispos aos críticos da Igreja, desde irmãs contemplativas a ateus, desde a Europa à Ásia. A Igreja disponibilizou os seus ouvidos. Escutou. Era absolutamente necessário ouvir, desse no que pudesse dar. E é evidente que nem todas as coisas foram agradáveis aos ouvidos. O escândalo dos abusos sexuais é transversal ao documento como uma ferida por cicatrizar; os novos desafios do mundo, desde o papel da mulher às questões de género, desde o papel da Igreja na sociedade ao papel da mulher na Igreja, desde a liturgia ao diálogo com os diferentes, tudo veio parar ao documento.

Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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