Pelo padre José Júlio Rocha
Não é fácil encarar, face a face, o sofrimento de uma pessoa idosa. Causa-nos embaraço, inaptidão, constrangimento. Não nos deixa propriamente o coração a sangrar. Se fosse uma pessoa nova, se fosse uma criança, os nossos sentimentos borbotariam e nós passaríamos um bom bocado a desenvolver compaixão, pena, desgosto ou lágrimas. As nossas redes sociais pululam de cãezinhos e gatinhos a sofrer, ganindo ou miando a pedir ajuda, animaizinhos abandonados e sujos, de olhares humildes e pedintes, e as lágrimas de revolta e sincera piedade arrasam as redes sociais. Para cada cem “posts” de animais abandonados, lá aparece o de um velho pedinte ou esquecido numa cama, com dois ou três “likes” por baixo. Os velhos doentes são a antecâmara da morte. Os gatinhos são bonitos demais para dormirem na rua.
Não me dá especial prazer visitar doentes. Primeiro porque o prazer não é o motivo das minhas boas ações. Segundo porque tenho uma difícil sensibilidade ao sofrimento alheio. Afeta-me por vezes e, nos casos mais críticos e dolorosos, carrego comigo o sofrimento alheio. Nunca desprezes uma lágrima sincera. O meu lema é, de certo modo, “onde houver o bem a fazer que se faça”, como dizem algumas irmãs franciscanas. Muitas vezes não o faço, o que indica a minha comum condição humana: ninguém é perfeito e, como São Paulo, muitas são as vezes em que faço o mal que não quero e não faço o bem que quero.
O dia da visita aos doentes é um dia de compenetração, de musculação da alma para os embates com aquelas lágrimas que procuro ajudar a limpar, aquelas dores que não consigo curar, aquela solidão consagrada dos velhos doentes, que já nada dão e só se sentem um estorvo, um peso inútil e trabalhoso, que atravanca projetos familiares. Na sociedade das férias e dos passeios, dos prazeres e do bem-estar, uma família que tem um doente na cama é uma família, de algum modo, amputada. A solidão dos velhos é diretamente proporcional ao nosso individualismo. Eles deram-nos o que nós damos aos nossos filhos. Os nossos filhos vão dar-nos menos do que nós damos aos nossos idosos.
Aqueles olhos de um azul brilhante riem e choram ao mesmo tempo, mal eu entro no quarto arranjadinho e pequeno, com uma cama articulada onde se estende o corpo de 95 anos da tia Celestina. Cabelos de neve, rosto branquinho, nunca chora sem sorrir, coisa estranha de quem faz um esforço por adocicar a dor, dando à dor aquele matiz de cinzento-rosa que deve ser aceite sem revolta nem desespero.
A tia celestina nasceu na “Vilha”, como é conhecida a vila de São Sebastião, nos anos vinte do século passado. Com uma carrada de irmãos, não é difícil adivinhar que nasceu na pobreza comum naquelas datas e nas nossas terras. Mesmo assim era feliz na infância, porque, diz ela, qualquer coisa servia para brincar, as crianças costumavam ser amigas, havia uma alegria que hoje não há. É mais ou menos isso que quase todos nós pensamos quando a idade vai dando mais passado do que futuro.
A tia Celestina foi colega de catequese da Maria Vieira. Maria Vieira, para quem não ouviu falar dela, é hoje venerada como uma santa cuja ermida, nas margens de São Sebastião, é lugar de peregrinação de bastante afluência. Morreu aos 13 anos, assassinada por um certo “Quinteiro” que quis abusar dela. Uma cavadela na cabeça acabou por matar a criança, não sem que ela, antes do último suspiro, perdoasse o assassino. Está a correr hoje, nos primeiros passos, o seu processo de beatificação.
A tia Celestina lembra-se bem dela, na catequese, ambas pobres, ambas amigas. Uma menina rica da Vila costumava levar sempre uma laranja – coisa rara – para a catequese, e limitava-se a comê-la diante das outras. Celestina e Maria Vieira, silenciosas e humildes, ficavam ao pé dela, à espera que ela lhes desse uma casca da laranja para terem o prazer de a trincar.
Já perguntei à tia Celestina como era a Maria Vieira, à espera de virtudes heroicas numa criança em vias de santidade. A resposta da tia Celestina é desarmante: “Era uma pequena como as outras.”
Nas vésperas de Natal de há uns quatro ou cinco anos atrás celebrei um funeral. Era 23 de Dezembro. A urna entrou pela igreja adentro fechada. Atrás da urna uns cabelos brancos de neve, uns olhos azuis brilhantes, suportando o insuportável, amparada, em ambos os braços, por duas senhoras. Era a tia Celestina. A dor absoluta naquele corpo que não se aguentava de pé era audível num gemido que não se sabia se era choro ou os restos de ter chorado demais. À sua frente, naquela urna lacrada, ia o corpo do seu filho mais novo, vítima de uma leucemia diagnosticada tarde, que o levou às pressas para Lisboa onde morreu. Não há alegria maior do que ser mãe. Nem dor maior do que deixar de o ser.
E naquele dia 23, com o coração embargado por aquela dor de olhos azuis, tive a oportunidade de dizer que, nas vésperas de Natal, estávamos a celebrar o oposto do Natal: não o sorriso feliz de uma Mãe que vê um Filho nascer, mas a angústia daquela mãe que vê o filho partir.
Talvez não seja preciso dizer que a tia Celestina nunca mais foi a mesma.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.