Pelo padre José Júlio Rocha
Aos oitenta anos minha mãe continua a usar o seu i-pad de uma forma desenvolta: já o tem há uns seis anos e entretém-se a conversar com as primas, as amigas, os filhos, o mundo. Quando comunicamos visualmente com ela, é difícil ver-lhe a cara, uma vez que ela, usando óculos progressivos, olha de cima para baixo, apontando o ecrã para o teto. Com sorte vemos-lhe o cabelo ou a testa, mas é uma alegria!
Ainda há poucos dias, acabado de chegar a Boston, recebo, de minha mãe, uma videochamada pelo Messenger, a saber se tinha chegado bem, etc. Estamos perto de todo o mundo, mesmo estando longe, benditas sejam estas novas tecnologias que nos permitem suavizar a saudade, minimizar a nostalgia, aproximar a distância, colmatar a falta.
Lembro-me bem da primeira vez (terá sido, de alguma forma, a única) em que parti para sempre da minha família, aos treze anos, para a vizinha Ponta Delgada que, naquele tempo, ficava tão distante como o Japão ou a Nova Zelândia. Sozinho e com uma mala maior do que eu, entrei num mundo diferente, completamente novo, um corte quase radical com o passado, uma mudança de vida que não está bem ao alcance de uma criança.
Isto pode parecer mentira, mas, aos treze anos, nunca tinha pegado num telefone, nunca tinha feito ou recebido nenhuma chamada daqueles instrumentos negros com um bocal e cauda enrolada. Na casa paterna não havia telefone. Então combinou-se, antes da minha partida, ir a casa do tio João Madruga, que já tinha telefone, para, às sete e meia da tarde do dia seguinte à minha partida, eu chamar do seminário para aquele número e meu pai estar lá para atender e saber como é que eu tinha chegado ao seminário.
Eu estava nervosíssimo quando levantei o bocal do telefone. Lembro-me que cheirava a tabaco, o que me repugnou. Disquei – tra-traaaaa-taaaaaa-traa – o número e comecei a ouvir o ainda atual bip-bip. Lembro-me de me dizerem que se fosse um bip-bip muito apressado é porque a linha estava ocupada. Mas eu ouvi um biiiiiip-biiiiiip mais longo e esperei, ansioso, alguma voz vinda daquela máquina estranha que, sei lá como, fazia ouvir vozes de muto longe. E lá consegui falar com meu pai. Um cabo de trabalhos!
O que isto mudou!
A evolução do telemóvel, desde os primeiros tijolos até aos aparelhos sofisticadíssimos de hoje, é algo de brutal. E a forma como ele transformou as nossas vidas também é um caso para se estudar. A nossa lista de contatos, a nossa agenda, a nossa câmara fotográfica o nosso álbum de fotografias, o nosso relógio, o nosso despertador, a nossa internet, o nosso facebook e outras redes sociais, as nossas videochamadas, o nosso mundo, tudo dentro de um rectangulozinho achatado. O mundo inteiro está no nosso bolso e podemos levá-lo para onde quisermos. Não sei se temos consciência das alterações que o pequeno dispositivo provocou nas nossas vidas, o quanto elas se alteraram nos últimos 20, 30 anos. A melhor forma de fazermos essas contas é pensar como era a nossa vida antes do telemóvel. Hoje quase falamos mais ao telemóvel do que cara a cara. Como é que marcávamos uma reunião, combinávamos as coisas, ligávamos com urgência a alguém? A vida ganhou uma velocidade estonteante. A informação chega na hora, como peixe do mar para o prato, qualquer dúvida ou ignorância é imediatamente resolvida no Google ou na Wikipédia, a memória foi transitando, com inusitada rapidez, dos nossos cérebros para a própria memória do computador e do telemóvel. Sem telemóvel sentimo-nos nus, vazios, falta-nos uma parte do corpo…
As redes sociais são um caso particularmente interessante no século XXI. Fenómeno assaz difundido, que desbaratou a nossa privacidade, as redes sociais são um submundo incontrolável e de consequências imprevisíveis. Ainda me recordo dos célebres diários, muitos deles fechados a tosco cadeado, onde desabafávamos as nossas intimidades e, se alguém o lesse, considerávamos um reles desrespeito pela privacidade. Hoje irritamo-nos quando não leem o que escrevemos no “diário” facebook, desde o prato confecionado ao gatinho mimoso, ao amigo íntimo com uma cerveja à frente, até às nossas opiniões mais ridículas.
Hoje passei diante de um café e os clientes chamaram-me a atenção: eram cinco, todas mulheres, todas sentadas em mesas diferentes, todas olhando e mexendo no respetivo telemóvel. Uma sorria com placidez… devia estar a trocar mensagens. Não deixei de pensar na triste realidade da solidão que esta sociedade tecnológica está semeando. A nossa dependência das novas tecnologias tendencialmente leva-nos a fechar-nos em nós próprios.
Hikikomori é um estranho étimo japonês. Indica os jovens solitários que se afastaram de todo o contato social e, muitas vezes, ficam anos sem sair de casa. Começaram a ter contacto com as novas tecnologias demasiado cedo. O mundo virtual sobrepôs-se ao real, o seu sistema neurológico alterou-se de tal modo que é praticamente impossível “normalizar” o jovem, tal é a dependência. Tudo, desde a comida à roupa, dos videojogos aos contatos, é feito teclando dentro de um quarto. Há mais de um milhão de jovens afetados por isto no Japão. E não é só no Japão.
Para esses jovens, sair à rua é um esforço semelhante ao que nós faríamos se nos obrigassem a desfilar nus no cortejo de abertura das Sanjoaninas.
Portanto, todas as vezes que enfiares um telemóvel nas mãos de um bebé, lembra-te disso…
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular , na rubrica Rua do Palácio