“Há um afastamento da igreja formal, hierárquica e ritual, mas não uma ruptura generalizada entre sociedade e Igreja”

Na semana em que a Diocese assinala 480 anos, José Guilherme Reis Leite, historiador e investigador, fala do passado e do futuro da diocese de Angra

Sítio Igreja Açores- A Diocese de Angra está a assinalar 480 anos. Como se poderia fazer este balanço de quase 500 anos de evangelização nos Açores?

José Guilherme Reis Leite- Apesar de haver muita informação sobre a história da Diocese de Angra e alguns estudos, uns mais antigos outros mais atualizados, a verdade é que existem muitas zonas cinzentas que dificultam um panorama de vida diocesana ao longo destes quinhentos anos. Contudo, mesmo correndo o risco de ser impressionista e pouco ou nada objectivo, atrevo-me a dizer que o balanço que sugere é de uma diocese portuguesa periférica, em que as virtudes e os defeitos do catolicismo lusitano aqui chegavam esbatidos e raras vezes com dinâmica substantiva.

Os nossos bispos e a hierarquia em geral procuravam cumprir a sua missão evangelizadora dentro das determinantes da Igreja portuguesa, em que o regalismo e a aliança estreita entre política e religião imperavam. Na Diocese de Angra essa dependência era até acentuada devido à dependência da Ordem de Cristo, da qual o rei era o governador perpétuo.

Nos tempos mais recentes, principalmente no séc XX, a diocese acompanhou também as reformas e os estreitos caminhos da Igreja Católica em Portugal, copiando as virtudes e os vícios.

Assim, com pouca ou nenhuma independência e com os atrasos que as periferias sempre sofrem, a vida da Diocese de Angra não foi brilhante, mas cumpriu o essencial e em algumas vezes conseguiu mesmo sair da penumbra e brilhar, principalmente com sacerdotes que atingindo os píncaros da hierarquia católica atestaram o êxito da evangelização nos Açores.

 

Sítio Igreja Açores- O povoamento do arquipélago foi feito em paralelo com a sua evangelização. Foi isso que determinou o facto da religiosidade ser uma da marcas identitárias deste povo?

José Guilherme Reis Leite- Em boa verdade a sociedade açoriana desde sempre foi católica, até porque para se povoar as ilhas tinha que se ser cristão. Por outro lado, vieram os povoadores acompanhados de sacerdotes, que os enquadravam religiosamente. Assim, como não podia deixar de ser, os açorianos, tal como os portugueses em geral, são cultural e mentalmente produtos do catolicismo romano, mesmo quando parecem afastar-se da ortodoxia. Salvo raríssimas excepções, a nossa marca mais profunda é a do catolicismo, ao ponto de mesmo os que se confessavam ateus irem acrescentando que o eram graças a Deus! (Passe a anedota).

Nunca fomos terra de missão.

Recentemente publicou o Padre Helder Mendes, o vigário geral do nosso bispo em texto (Catolicismo Popular na Pastoral Actual – Povo e Cultura Popular)  em que muita desta matéria está bem explicada nas suas consequências.

Sítio Igreja Açores- Hoje vivemos um progressivo afastamento entre sociedade e igreja. É um sinal dos tempos ou há efectivamente responsabilidade por parte da igreja no arquipélago?

José Guilherme Reis Leite- Não me parece que esse afastamento entre sociedade e igreja seja assim tão evidente entre nós. Há, sem dúvida, um afastamento da igreja formal, hierárquica e ritual, mas não me parece que haja uma ruptura generalizada entre sociedade e Igreja. Há, até, parece-me, uma atração da sociedade pela Igreja, desde que isso não implique disciplina e compromisso. O que sobressai é antes uma visão de um catolicismo em que cada um quer escolher o que lhe convém e só isso em cada momento da sua vida. Daí parecer que sociedade e igreja se afastam, quando afinal se atraem numa dialética por vezes pouco digna para ambas as partes.

Vivemos tempos em que se temem os compromissos e as fidelidades para toda a vida, que são as marcas mais exigentes do evangelho, ainda que estas dificuldades já venham explicadas por Jesus Cristo na sua catequese. Quantos ao longo da história conhecendo Jesus e admirando-o recusaram, contudo, um compromisso?

Afinal somos bem menos inovadores.

 

Sítio Igreja Açores- Os Açores continuam a ser a região do país com maiores percentagens na prática dominical, na catequese ou nos casamentos católicos. Somos efectivamente católicos ou ritualistas ligados à tradição?

José Guilherme Reis Leite– Somos ambas as coisas. Somos católicos de formação e por isso recusamo-nos a descartar as práticas do catolicismo. Daí, parecermos ritualistas e tradicionalistas, como alguns efectivamente serão, mas muitos outros são sinceramente católicos, mas pouco firmes no dia a dia. Para não ser assim teríamos que ter uma disciplina pessoal, que não é virtude que se cultive muito entre os açorianos.

 

Sítio Igreja Açores- Estas ilhas deram muitos bispos mas poucos açorianos foram bispos de Angra. Que interpretação podemos dar a este facto?

José Guilherme Reis Leite- Ninguém é profeta na sua terra, lá diz o evangelho.

Na verdade só tivemos dois bispos de Angra açorianos. D. Alexandre, no início do séc XIX e o actual. Isto foi assim porque é sempre difícil aceitar-se a autoridade daqueles com quem convivemos muito de perto. Faz parte da condição humana e para isso não se encontrou ainda remédio. Talvez nem seja necessário.

Sítio Igreja Açores- De que forma é que um açoriano pode contribuir mais para a compreensão da unidade diocesana?

José Guilherme Reis Leite- Um açoriano católico, deve-se acrescentar, porque aos outros esse assunto passa ao largo, julgo eu.

Um açoriano católico pode contribuir para a compreensão da unidade diocesana mantendo-se unido ao seu bispo e à sua autoridade pastoral.

Temos a rara felicidade de sermos um povo suficientemente pequeno para podermos beneficiar de uma unidade religiosa e espiritual e seria loucura desperdiçar esta benesse; mas não me admiraria muito que os mais empenhados em destruir a unidade diocesana fossem ou não católicos ou indiferente e os críticos!

 

Sítio Igreja Açores -Iniciamos um novo ano Pastoral sob o signo do Familia. Como é que a igreja nos Açores devia interpretar estes novos tempos? 

José Guilherme Reis Leite- A Igreja Católica tem um modelo de família assente na união entre um homem e uma mulher, através do sacramento do matrimónio, que o torna indissolúvel desde que tenha sido assumido consciente e livremente e com partilha de responsabilidades na criação e educação dos filhos. Apresenta este modelo como o melhor para a sociedade e defende-o como o único para os seus fieis.

Ora, na sociedade do nosso tempo este modelo é contestado como sendo o melhor e ainda mais como o único desejável, aceitando as leis outras soluções, desde o divórcio, à união de facto e a união de pares do mesmo sexo.

Não me parece que a Igreja deva desistir da sua doutrina acerca do matrimónio e da família cristã. Outra coisa é vir a aceitar uma disciplina menos rígida para aqueles católicos, que tendo-se divorciado no civil, contraíram outra união e fundaram outra família afastando-se, assim, da plena inserção na vida religiosa.

Todos devem evidentemente ser tratados com caridade e compreensão, por quantos dramas pessoais existentes, mas resta saber até onde vão as consequências deste princípio e a comunhão com a igreja católica dos que escolheram essas formas de união, que a lei civil lhes faculta.

Foi tema do sínodo dos bispos em Roma, mas sem progressos palpáveis.

Sítio Igreja Açores- O Senhor viveu os tempos pos-conciliares. O Papa Francisco e a sua exortação apostólica “A Alegria do Evangelho” vai muito nesta linha conciliar. Está a igreja preparada para acatar estas mudanças?

José Guilherme Reis Leite– Em boa verdade vivi os tempos ante-conciliares, os conciliares e os pos-conciliares, o que quer pelo menos dizer que estou velho.

Mas vamos à pergunta.

Está a Igreja preparada para acatar estas mudanças? (as do Papa Francisco)

Não é fácil  opinar sobre este assunto. Contudo para começar convém saber a que Igreja nos referimos. Hierárquica ou Povo de Deus?

Se nos referirmos à hierarquia a resposta é mais complexa pois infelizmente tem sido esta, aparentemente, a menos conformada com as decisões papais, ao contrário do povo de Deus.

A hierarquia desde o concílio dividiu-se em três sectores: os inconformados com os decretos do concílio, que se revoltaram; os aderentes às decisões conciliares, mas preparados para as moderar e aceitar com cautela e outros pretendendo, com a sua adesão incondicional, demolir a “velha” igreja e construir outra “nova”. Valeu-nos o papa Paulo VI para acalmar os ânimos e levar a bom porto a barca de Pedro.

Mas que ficaram mossas, ficaram.

Quanto ao Povo de Deus, parece bem mais avisado e de uma forma geral recebeu com alegria e moderação os ensinamentos do concílio e do Papa, salvando assim a Igreja.

Leio agora no livro do nosso insuspeito padre António Rego, que nesses longínquos e saudosos anos 60, se recusava a “ostentar o Concílio como cruzada”. Boca santa, como se diz popularmente nas ilhas.

O pior foram aqueles que pretenderam fazer do Concílio uma cruzada.

Mas respondendo directamente à sua pergunta e admitindo que ela se dirige à nossa Igreja diocesana a resposta é afirmativa.

Sim, está preparada para aceitar as mudanças que o Papa Francisco tão entusiasticamente nos propõe na sua exortação.

 

Sítio Igreja Açores- Hoje ainda vivemos uma igreja muito clerical. Que desafios se colocam à Igreja diocesana de forma a que tenhamos cada vez mais leigos esclarecidos e empenhados e mais sacerdotes concentrados naquilo que é essencial?

José Guilherme Reis Leite- A sua pergunta é um mundo de acções, juízos de valor, programas, vivências e opções possíveis. Na verdade os cristãos são um povo sacerdotal e o papa Francisco não se tem cansado de exortar a todos para serem discípulos missionários, mais do que discípulos e missionários. Todos temos compromissos que nos convidam a não nos acomodarmos, a sairmos das rotinas, do adquirido e a empenharmo-nos esclarecidamente na pastoral e na evangelização da nossa Igreja particular, mas também da Igreja Universal.

Contudo, mesmo para aqueles que querem aceitar o desafio que o papa nos lança de vivermos o evangelho  dentro destas linhas das suas exortações é sempre difícil concretiza-las.

A igreja que nos rodeia  é ainda muito clerical e nisso, parece-me, vai de encontro à vivência e ao desejo da maioria dos católicos açorianos. Uma “revolução”, como quer o papa, não se faz facilmente. É óbvio que muito mudou nos últimos anos na igreja açoriana e na participação dos leigos nas actividades pastorais, mas mesmo assim foi pouco para o que se deseja.

As Orientações Diocesanas de Pastoral, recentemente divulgadas dão, um sinal de mudança, mas não concretizam essa mudança desejada. Continuamos com uma organização em conselhos, o que quer dizer que os leigos são chamados a aconselhar e não a decidir, mesmo em questões meramente administrativas.

No que foi divulgado do último Conselho Presbiteral não são claras intervenções de mudança muito profundas neste campo. Basta dizer que nenhum dos convidados a participarem, por iniciativa do bispo, era leigo. Foi uma reunião  de presbíteros para presbíteros.

De um dos convidados foi tornado publico um texto chamado “Olhar síntese sobre o Evangelho da Alegria” onde se frisa muito o apelo do papa à  necessidade de envolver todos na transformação da Igreja, como discípulos missionários e até um desabafo sobre a urgência de envolver os paroquianos para transformar as paróquias em comunidades cristãs, chamando a atenção que esse caminho leva a um novo modelo de paróquia. Apesar disto, as conclusões do Conselho Presbitoral, louvando este texto, não recolhem as propostas concretas do autor.

Isto simplesmente quer dizer, julgo eu, que só muito lentamente a nossa igreja diocesana irá mudando. É uma opção pastoral consciente, cautelosa e possivelmente fundamentada no conhecimento no terreno da realidade dos nossos católicos.

Sítio Igreja Açores-Este ano o Prelado Diocesano, na linha da exortação do Papa Francisco, pede à Igreja que saia em missão e vá ao encontro das periferias. Como é que analisa esta proposta de saída e que frutos pode ela dar?

José Guilherme Reis Leite- O nosso Bispo tem incontestavelmente sido uma voz corajosa que nos incita a todos a vivermos uma pastoral que ultrapasse a conservação e se transforme numa pastoral missionária. Em todos os seus escritos exorta-nos a sairmos em missão, em procurarmos as pessoas, em partilharmos a nossa fé e assim por diante.

Não é por falta de incentivo que a nossa igreja particular deixará de pôr em prática a exortação do Papa. Resta saber é qual o acolhimento das orientações do nosso bispo junto dos paroquianos.

Mas não sejamos pessimistas. Por todos as nossas ilhas existem irmão empenhados na missão da pastoral cujo trabalho é uma louvável atitude de corresponder as exortações quer do papa, quer do bispo. Nestas coisas os mais empenhados confrontam-se todos os dias com a consciência que  é sempre possível fazer mais e fazer melhor e mesmo assim não desistem. É isto, aliás, que me leva a afirmar que a presença da Igreja na sociedade açoriana é uma realidade. É uma presença discreta, mas eficiente e para quem estiver atento é uma presença indispensável. A nossa própria insatisfação, como discípulos, não nos deve levar ao desânimo e a  uma visão negativa. Todo o empenho e toda a missão é sempre provisória, porque a tarefa é constante e interminável.

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