Pelo padre José Júlio Rocha
É como se tivesse sido ontem. Bem que me está cravado na memória. Era por volta das dez e meia da noite do dia quinze de Janeiro de 2007, há quinze anos.
Vinha dos Biscoitos, no meu automóvel, a furar a escuridão dos caminhos, a desbravar nevoeiro, a encurtar a viagem até Angra. Não me lembro já porquê, aquele dia tinha sido aziago. Tinha acabado de fazer uma conferência nos Cursilhos de Cristandade, lembro-me bem de ter sido um pouco pessimista e até houve quem me disse que eu não estava nos meus dias. Há dias que não são, nunca poderão ser nossos.
Virei à direita pelo caminho das Veredas, sobranceiro a Terra Chã e Posto Santo. Durante o dia tinha caído sobre a ilha uma forte tempestade de chuvas e ventos, de forma que as ribeiras corriam céleres e os ramos das árvores caíam para o caminho. Aquela reta das Veredas acabava bruscamente, num pequeno barranco plantado de criptomérias. Ou se vira para a direita ou se vira para a esquerda, em curvas súbitas de 90 graus, o que exige atenção. Eu não estava atento. Distraí-me no nevoeiro e eis que, do nada, a uns 30 metros, me aparecem as árvores à frente, depois de uma lomba. Instintivamente travei a fundo. Dava para parar, mas o carro não parou. O chão estava pejado daquelas aparas de criptoméria, quase não se via o asfalto, e o carro deslizou como trenó em neve, sem que nada se pudesse fazer. Foram segundos de pânico. Bati de frente no tronco de uma árvore, um choque bruto, um estampido feroz, o tronco a entrar pela frente do carro, os “airbags” a disparar na minha cara, tudo fumo e cheiro a pólvora. Bater no tronco de uma árvore é uma bela obra!
Não me magoei, não vinha com velocidade. Magoou-se-me o carro, com a frente desfeita e eu, que nunca nadei em dinheiro, previ um afogamento em dívidas. Belo trabalho…
No dia 16 de Janeiro, o dia seguinte, chegou o telefonema de Dom António de Sousa Braga. Queria falar comigo. “O que será que ele me quer?” perguntava-me a caminho do Paço.
Fui recebido com um abraço apertado e um daqueles sorrisos que Só Dom António sabia dar, naqueles olhos desnivelados num rosto a transbordar de bondade. “Estás vivo? Não te magoaste? É isso que interessa.” Ao fim de alguns dedos de conversa, Dom António apresenta-me um envelope. “É para o que precisares.” O envelope continha um cheque no valor de 1500 euros. Deu-mos, assim, sem lhe custar nada, como quem dá um aperto de mão. Aquilo era, presumo, bem mais do que o seu vencimento. Balbuciei umas coisas mas ele estava de tal modo decidido que não valia a pena ripostar.
Era assim Dom António.
Não me compete refletir sobre como deve ser um bispo. Mas faço minhas as palavras de muita gente quando digo que ele foi um bom pastor em toda a linha. Simples e sem peneiras, sempre pronto a escutar, dava o seu número a quem lhe pedisse, não regateava sorrisos nem abraços, “mais do que presidir”, dizia ele, “o bispo deve servir.”
Em 1996, quando Dom Aurélio deu o lugar a Dom António na Diocese, vínhamos de um episcopado diferente. Dom Aurélio era bem mais circunspeto, organizado, prezando a autoridade, tão retraído que até o barbeiro lhe ia a casa cortar o cabelo. Víamo-lo nas cerimónias, hirto e sério, no Paço, amável e calado. Dom António, mal chegou, deixou a batina no quarto e, de simples cabeção e cruz de metal, saía para a rua, para as suas compras, para ir ao Seminário, à Sé, tomar um café, passear. As pessoas, espantadas, olhavam Dom António e perguntavam se era mesmo o senhor bispo. Toda a gente o cumprimentava, ele falava com toda a gente. Perguntava, nos cafés ou aos amigos, se tinham moedas para trocar por notas. Não lhe podiam faltar moedas no bolso para dar em esmola aos pedintes que se lhe punham na rota entre o Paço e o Seminário. Todos o amavam.
Como sempre, não soubemos aproveitar devidamente o dom de um bispo como António. Trazia as novidades do Vaticano II na alma e o sonho de uma Igreja aberta e pobre, muito à maneira, “avant la lettre”, do Papa Francisco. Dom António mudou o rosto da Igreja, o seu sentido de autoridade, de pastoral, de serviço, de abertura ao mundo, sobretudo aos mais desfavorecidos. Manteve uma relação paterna com o clero. Sabia bem que os padres dos Açores, por vários motivos, têm uma visão da Igreja e um sentido crítico muito peculiares. Isso nunca o incomodou. Primou pelo diálogo com todas as suas consequências. A catástrofe financeira da Diocese foi o seu calvário, sofreu mais que quase todos. Chegou a propor a sua renúncia, com a humildade de quem não se acha competente para gerir uma Diocese economicamente em pantanas. Segurou.
Lembro-me de o Papa Francisco aconselhar os bispos a não viajarem tanto e a dedicarem-se mais às suas dioceses. Dom António ria, dizendo que, da próxima vez que visse o papa Francisco, lhe ia dizer que a melhor forma que tinha de estar próximo da Diocese era precisamente viajar na Sata…
Dom António de Sousa Braga partiu, deixando-nos esse intenso perfume da Igreja que todos nós queremos. Humano, muito humano, o grande legado que nos deixa é o de saber servir. Fico com a amarga sensação de que, soubéssemos aproveitar melhor esses vinte anos de bênção, a Igreja nos Açores seria diferente.
Há quem diga que o seu episcopado necessitava de mais ordem, coordenação, cálculo, autoridade. Absolutamente de acordo. Resta saber se precisamos de uma Igreja com mais autoridade, ordem, estrutura, ou de uma Igreja com mais carisma, serviço, abertura.
A bondade passou por aqui. Um legado inestimável.