Por Francisco Maduro-Dias
Quem passa pela Rua da Sé, em Angra do Heroísmo, passa com a naturalidade de quem vive na ilha ou com a curiosidade de quem a visita, mas ligará pouco, ou nada, ao que ela representa no contexto de uma cidade cuja zona central está inscrita na lista do Património Mundial da UNESCO, desde Dezembro de 1983.
A rua chama-se “da Sé” desde, digamos assim, sempre, sendo que esse sempre tem à volta de quinhentos anos, tantos quantos se contam entre 1534 e 2022. Foi em Novembro desse ano do século XVI que Angra, elevada à categoria de cidade por D. João III em Agosto, estava o Rei em Évora e a capital andava com ele, recebeu a sede da Diocese.
A igrejinha que existia à época, mais ou menos neste mesmo lugar, era uma igreja orientada e, seguindo a investigação realizada por Antonieta Reis Leite, teria a porta principal alinhada com a rua agora chamada do Barcelos.
O tardoz da capela-mor ficaria voltado a nascente, a oriente, portanto, sendo provável testemunho disso um desvio e alargamento que ainda hoje se nota a meia da Rua do Salinas. Quem passe por lá, nestes dias, repara que o passeio alarga bastante, ali mais ou menos a meio do troço entre a Rua da Rosa e a Rua da Sé.
O ser uma igreja orientada importa para esta conversa. É que, durante os primeiros séculos do cristianismo era hábito, não norma escrita, mas costume quase sempre seguido, colocar a capela-mor das igrejas virado para o lugar onde Cristo fora crucificado, Jerusalém. Como toda a Europa fica a oeste a consequência foi que as novas igrejas, feitas de raiz, começaram, todas, a ter a capela-mor volta a oriente. Igrejas orientadas, portanto e era assim a antiga igreja de São Salvador.
Eis que Angra se torna, então, sede de Diocese e, se bem que não tenha sido o primeiro Bispo, importa recordar aqui e agora o único dominicano que por cá andou, D. Frei Jorge de Santiago.
Em boa verdade trata-se do terceiro Bispo, em ordem cronológica, mas do primeiro que, em linguagem comum, se poderá dizer que assentou arriais em Angra, e de que modo!
Organizou o primeiro Sínodo Diocesano, fez publicar as Constituições Sinodais do Bispado, de que se conhecem muito poucos exemplares, havendo um na Biblioteca Luís da Silva Ribeiro. Organizou, de modo nunca dantes visto, a vida da jovem diocese, e pressionou os poderes vigentes no sentido de se fazer uma nova Sé, digna e bem dimensionada. Frei Jorge participou no Concílio de Trento, aliás, coisa que se percebe, e bem, nas ditas constituições.
Aludo a Trento porque, a partir do dito Concílio, a tal regra, não escrita, mas seguida, de orientar os edifícios dos templos com a capela-mor para Jerusalém, é abandonada. Começada a construir em finais do século XVI, a nova catedral de Angra será claro fruto dos novos tempos e é para isso que vos peço a atenção, desta vez.
A Angra da segunda metade de quinhentos fervilhava de actividade económica, de questiúnculas políticas, de mercancias várias, de especiarias e prata. A cidade crescia a olhos vistos e os diversos poderes instalavam-se e enobreciam-se. O Capitão do Donatário, ao fundo da Rua Direita, a Senhora Câmara ao centro da urbe, numa Praça mais pequena, mas central, o Provedor das Armadas já vivia e coordenava os seus negócios lá em cima, no Corpo Santo, junto à igreja da Conceição.
A nova Sé, depois de complicações várias, vai nascer com as portas, a fachada e as sineiras, duas como é dado numa catedral, voltadas à rua principal da urbe, marcando, em definitivo, o seu lugar e preponderância, secundarizando a capela-mor e privilegiando o viver urbano.
Desde então, ultrapassando regimes, modos de pensar e costumes vários, a mais importante rua da Cidade de Angra e a mais relevante da sua malha antiga, passou a chamar-se Rua da Sé, e Deus teve a Sua porta, na Cidade.