Pelo padre Teodoro Medeiros
As recordações de infância pairam dentro de nós, traves mestras do nosso ADN, ineludíveis como o chão onde caminhamos. No entanto, tentar precisá-las, descrevê-las ao detalhe, é quase equivalente a destruí-las. Se as compararmos com quem estava lá, as coisas não encaixam, eu garanto que me lembro bem, foi como digo, mas outros insistem que aconteceu de outra maneira, por outras razões.
Todas as memórias são construídas, filtradas em tempo real pela lente da emoção, editadas pela tesoura do significado que lhes damos: foram antes marcadas pelos sonhos que tínhamos e agora pelos sonhos que mantemos. E se não te recordas, então inventa, continua a sonhar.
É neste espírito que é composto “A metamorfose dos pássaros”, o filme brilhante em que Catarina Vasconcelos nos apresenta três gerações da sua família. Os diferentes personagens falam em voz off, o que dá uma certa distância cognoscitiva às imagens a que assistimos. Estas são compostas como se de pinturas se tratassem, autênticas peças de observação do humano, testemunhas da beleza de tudo.
A relação entre texto e imagens não é meramente ilustrativa, não é sempre direta, há espaço para a criação de uma aura de assombro, afirmação telúrica de uma unidade: flores, a habitação, o mar, tudo está envolvido numa mesma dimensão maternal, uma apresentação saudosamente infantil da totalidade do que existe.
Poucas vezes se fala de Deus, mas o próprio mar é descrito como um infinito que entra dentro de nós, e Zulmira, a empregada não crente, gostava de ouvir as orações da avó Beatriz. O nome de Jesus surge no mais doce de todos os momentos: a humanidade é naturalmente religiosa, como se sabe (as crianças sabem).
O filme é uma verdadeira obra literária, mas o texto é sempre curioso e muitas vezes pungente: como quando se diz que a perda da mãe não chega a ser memória, o cérebro recusa-se a processar esse dia, ou que a família se tornou como uma natureza morta nesse momento, alheia a tudo o que vivia.
E muitas frases possuem o condão de nos atingir, axiomas da vida, fazendo-nos parar e refletir que essas pessoas vivem a um nível mais profundo do que nós, o que
tínhamos antes. Há até uma variação do Pai Nosso, dedicado aqui aos pássaros: “pássaro nosso que estás nos céus, santificadas sejam as vossas asas, venha a nós o vosso voo, olha pelos telhados das nossas casas.”
Este ato solene de homenagem, apesar do formalismo, não sabe a meramente intelectual. Para esta auréola de simplicidade, contribui muito a exposição dos segredos do que é pertencer a uma família: o desejo que os pais têm de que os filhos nunca cresçam, ou as perguntas inocentes que estes fazem ao mundo. Este é um filme elevado porque humano e acessível, um caso raro de obra rebuscada que todos podem acompanhar.
Aqui, os pássaros são mestres da vida; as árvores, o suporte da família e de cada um; a morte, criadora de fantasmas; as plantas, semeadas pelo amor à vida; a verdade, um denunciado conceito elástico; a memória, um segredo encenado, reservado até ao clímax.
“A Metamorfose dos Pássaros” não é apenas um grande filme português: é cinema superlativo e obrigatório, ponto final.
Assim como que uma mão de Deus, onde repousa o nosso coração.