Pelo padre José Júlio Rocha
Aqui há uns dias li na revista “Visão” (nº 1527) li uma entrevista ao padre Tobias Rodrigues sobre o facto de, há treze anos, ele ter deixado de exercer o sacerdócio. Sou professor no Seminário há mais de vinte e cinco anos e posso dizer que o Tobias foi um dos alunos mais inteligentes e perspicazes que conheci. Louco quanto baste para não ter medo dos desafios da vida, o Tobias fazia parte de uma vaga de seminaristas suficientemente irreverentes e entusiasmados para marcarem uma época.
O título da entrevista rezava: “Não deixei de ser padre porque me apaixonei”. Esta é, realmente, uma das razões mais comuns para um sacerdote deixar de exercer. Não foi assim com o Tobias. Na entrevista, ele próprio se intitula idealista. E só o podia ser. Quando se começa a ser padre, só se pode idealista, cair muitas vezes do cavalo abaixo, bater com os quatro costados no duro chão da realidade, mas levantar-se outra vez e saltar o de novo no dorso do cavalo dos grandes ideais. Não se pode ser padre sem uma dose – por vezes exagerada – de idealismo em cima de si. O contrário é o calculismo. Misericórdia!
A razão de o Tobias deixar de exercer o sacerdócio foi outra, eventualmente aquela que levou os melhores padres que conheci, ou de quem ouvi falar, a abandonar a missão sacerdotal: o sonho de uma Igreja nova, mais simples e próxima do Evangelho, sem a pesadíssima carga dos séculos que exigem esforços inauditos para mover um milímetro. É o embate dos ideais contra o chão da dura realidade. Tobias, como quase todos os seminaristas e padres novos daquele tempo, sonhava fazer parte de uma feliz revolução na Igreja. E, diz ele, “quando me apercebi que nunca ia acontecer, deixou de ter sentido.”
Hoje, presumo que o Tobias, a viver longe, seja um homem realizado, que nunca abandonou a Igreja e que, à sua maneira, continua a servi-la. Mas a razão que ele aduziu para deixar de exercer o sacerdócio é por demais consistente e perturbadora, talvez o verdadeiro cavalo de batalha para todo o padre que escolhe este caminho não para fugir ao mundo nem por causa das rendinhas e incensos, mas porque Jesus precisava dele para mudar o mundo. É também o meu cavalo de batalha.
Recordo bem o meu tempo de seminarista, “teenager” com os entusiasmos e as inconsciências da idade, a caminhar pelos trilhos do Monte Brasil ou as matas da Terra Chã, de sandálias nos pés, qual franciscano desobediente, a cantar, com três colegas, canções revolucionárias a Jesus Cristo. Junto da juventude, com violões e sonhos às costas. Como qualquer jovem, tinha um ídolo, com um póster na porta do quarto: um desenho magnífico de Jesus, cabelos desgrenhados e selvagens, uns olhos claros que me olhavam significativos e desafiadores, como a dizer: “Estás pronto, estás disponível, estás disposto a deixar tudo para entrares comigo nesta aventura?” Era por aqui que passava a minha vocação: que não levasse nada pelo caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem duas túnicas, apenas um par de sandálias, porque tudo o que pesa demais faz atrasar o caminho. Com estes ideais como suporte básico de vida, não admira que já tenha batido, com alguma violência, com os quatro costados no chão. Já tenho idade suficiente para perceber que não posso andar toda a vida a cair do cavalo abaixo e a levantar-me. Mas, se não o fizer, continuarei caído para sempre: no calculismo do padre satisfeito com o seu posto, que cumpre, como funcionário de Deus, as regras que lhe cabem, do padre conformado, sedentário, do padre que desistiu sem o saber. Quantas vezes essa tentação, qual aguilhada, se me crava no flanco, como a São Paulo…
A igreja anda um pouco enferma de clericalismo e “sobre-hierarquização”. Sim, é certo: a Igreja tem uma estrutura hierárquica e isso é fundamental. Já Jesus dizia montanhas de vezes que veio para servir, que os primeiros sejam os últimos, que a humildade é uma virtude suprema. É esta a hierarquia em que acredito. É esta a hierarquia que realmente a Igreja exibe? Com tantas dignidades, roupas, incensos e primeiros lugares nas assembleias e banquetes, com os ouros que se derramam pelos clérigos abaixo, com as prebendas adquiridas e conquistadas, com a rigidez das estruturas que, tantas vezes, cala o Espírito, que diferença fazemos neste mundo? A Igreja deve marcar a diferença. E marca, em muitas circunstâncias, porque há mulheres e homens santos que realmente se parecem com aquele Jesus da parede do meu quarto. Mas o que por vezes dá nas vistas é o carreirismo, a luta de poder, o conforto das “cadeiras de Moisés”, onde fariseus e católicos são tão iguais.
Fui ordenado sacerdote há trinta anos. Já tenho idade e, presumo, juízo suficiente para saber o meu lugar, compreender que não sou nenhum Robin dos Bosques da Igreja, abster-me de mudar o mundo e passar o resto dos anos que me faltam a cumprir com o Direito Canónico, celebrar piamente os sacramentos e conformar-me com o facto, por demais consumado, de que a Igreja é assim e pronto.
Conformar-me com isso? Talvez seis meses depois de morto.
Quando era seminarista, perto da ordenação, havia quem me perguntasse: “Sabes aonde te vais meter?”
Ainda hoje não sei. Graças a Deus.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular na rubrica Rua do palácio.