Pelo padre José Júlio Rocha
O “Oratorio San Pietro” era uma instituição educativa católica que ficava numa paróquia próxima do Colégio Português, em Roma. Tinha mais de um campo de futebol e uma piscina coberta, e havia um acordo entre o Colégio e o “Oratorio” que permitia aos padres do Colégio jogar ou nadar aos sábados, desde que se disponibilizassem para confessar aos domingos, durante a missa do “Oratorio”.
Eu ia lá praticamente todos os domingos, às onze da manhã, fazer uma coisa que nunca achei grande coisa: confessar durante a missa. O pároco, já com certa idade, era um pouco monótono nas homilias e era exatamente durante as longas homilias que os jovens vinham confessar-se. Estávamos nos inícios dos anos noventa. Era uma festa! Muitos jovens vinham ter comigo apenas para dois dedos de conversa e escapar à “seca” da homilia.
Entre eles havia um jovem de 19 anos, seminarista, chamado Gianluca, um rapaz bem disposto e simpático, tímido quanto baste, por detrás de uns olhos pretos estilo italiano, e estes por detrás de uns óculos redondos de massa, à moda daquela altura. Todos os domingos em que eu lá estivesse, ele aproveitava a “deixa” da homilia do padre e vinha sentar-se a conversar comigo. Eu tinha mais uns seis anos do que ele e isso tornava-me muito mais próximo do que o distante e frio pároco com as suas homilias. Falávamos de tudo um pouco, sobretudo da sua caminhada espiritual, dos seus problemas e dúvidas, do seu insanável sonho de ser um padre diferente, que ajudasse a mudar radicalmente a Igreja, tornando-a mais jovem, mais aberta, mais corajosa, mais próxima daquele Jesus sem casa nem teto, nómada do amor. E eu gostava dele, porque revia a minha vocação nos seus sonhos.
Tocava bem violão, e a malta gostava dele. Aliás, naquela missa, ele era um dos tocadores do grupo coral, formado inteiramente com jovens, e cujos instrumentos eram só corda, com um jambé por companhia. Gianluca era um seminarista com tudo no seu lugar.
Vittoria era a jovem, loira e doce que, sentada ao seu lado na igreja, também dedilhava um violão no coro juvenil. Era linda, naqueles olhos de um azul quase brilhante, vestida sempre com muita simplicidade, talvez 17, talvez 18 anos, risonha como a primavera num campo de flores. Aconteceu, então, o inevitável: Gianluca, o sonhador, apaixonou-se por Vittoria e começa então uma batalha, aquela batalha sublime pela qual todo o seminarista que se preze deve passar, que é a luta titânica entre uma vocação de renúncia ao amor humano por amor a Jesus e a vaga imensa desse amor humano que, qual “tsunami”, ameaça levar quase tudo à sua frente. Pobre do seminarista que não passa pelo crivo dessa luta, que não chora o seu travesseiro, que não se prostra diante do sacrário, numa batalha interior cujas tréguas, cuja paz significam simplesmente que, seja qual for a escolha, se tornou homem maduro, pronto para todos os embates.
Até que um dia Gianluca me contou do seu primeiro beijo. Apesar de não se manifestar, ela já gostava dele antes de ele gostar dela. E foram dar um passeio à sumptuosa Villa D’Este, de um antigo cardeal do século XVI, com uns jardins renascentistas de cortar a respiração, situada na imprescindível Tivoli.
Vou tentar, por palavras minhas, reproduzir um pouco do que ele me contou: “Descemos os jardins, e como eu já os conhecia, fui o seu guia. Passámos pelas “Cento Fontane”, descemos até ao fundo. Já estávamos no jardim havia meia hora. Ela sentou-se num banco e olhou para mim com os olhos mais meigos do mundo. Não foi preciso mais nada, não havia necessidade de palavras, nada. Percebemos tudo. Sentei-me e beijámo-nos. Foi o meu primeiro beijo e foi o primeiro beijo dela. O mundo explodiu à minha volta numa cascata de flores. Perdi o peso e senti que flutuava, que aquele banco, aquele jardim, a Villa, o mundo só existiam para nós. Padre Júlio: duas pessoas que se amam verdadeiramente só podem receber de Deus um abraço.”
Levantei-me. Gianluca levantou-se comigo. Apertei-o num abraço, aquele abraço de quem sabe que o outro acabava de entrar numa das maiores, mais difíceis e mais belas batalhas da sua juventude.
Pouco tempo depois, regressei a Portugal. Antes disso, tivemos tempo de combinar um almoço e conversar um bocado. Era uma pena se ele abandonasse o seminário, deixando-me aquele amargo de boca ao pensar que, muitas vezes, são os melhores que ficam para trás. Ao mesmo tempo eu via naqueles dois jovens, de olhar puro e amor sincero, uma família feliz.
Parti. Gianluca e Vittoria ainda lutavam com o futuro. Pelo andar da carruagem, provavelmente Gianluca terá abandonado o seminário e dado, definitivamente, a mão a Vittoria. Nunca mais soube deles, que naquela altura não podíamos ser amigos no Facebook ou comunicar por Instagram, via Skype ou Messenger. Presumo que uma ferida terá ficado para sempre aberta no peito daquele jovem que queria transformar o mundo com uma guitarra às costas e Jesus na alma.
Lembro-me desta história todas as vezes que ouço Rui Veloso cantar o “Primeiro Beijo”: “Já não como, já não durmo, e eu caia se te minto: haverá gente informada se é amor isto que sinto.”
Talvez hoje tudo seja fácil de mais e optar pela solução mais apetecível é regra com poucas exceções. E, no entanto, Gianluca, tu lutaste, choraste, sofreste, rezaste. Onde estiveres, sei que escolheste o caminho certo.
Os que têm vidas fáceis nunca são felizes.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular.