Pelo Padre José Júlio Rocha
A expressão “ossos do ofício” é usada para ilustrar qualquer contratempo ou algo desagradável, inerente ao ofício, emprego ou atividade que alguém pratica. Também designa algo de estranho ou anedótico, resultado de qualquer atividade. Algo que não se quer ou não se espera, consequência das circunstâncias.
Os padres também têm os seus ossos do ofício, e de que maneira! Recordo um batismo numa das paróquias por onde passei. Era gente pobre, não habituada a celebrações litúrgicas, que eu nunca tinha visto na vida. Mas preparei-os para o acontecimento importante na vida da criança e na deles.
Só que, no dia e na hora do batismo, nada de o padrinho aparecer. Cinco minutos, dez, um quarto de hora, e o pai, que era irmão do padrinho, a perder a paciência. Até que o padrinho apareceu… com duas velas. Uma vela na mão, de cera enfeitada; outra vela pelo gargalo abaixo, umas boas doses de cerveja e vinho que o faziam caminhar um pouco de lado. Inquietei-me, mas lá conseguimos, com paciência, levar o batismo a bom porto. Com batismos e casamentos não é raro aparecerem estes ossos do ofício que, por vezes, dão vontade de chorar, outras, de rir.
Não esqueço outro batismo, também de há alguns anos a esta parte, que tinha tudo para correr mal. Nenhum dos padrinhos estava naquelas condições canónicas que são o calvário dos padres na preparação de um batismo. Não os conhecia de parte nenhuma, a não ser a madrinha que, de vez em quando, aparecia na missa. Na preparação, vejo a mãe angustiada: aqueles padrinhos eram tudo o que eles tinham. A mãe fez biquinhos para chorar quando eu lhe falei da dificuldade de aceitar os padrinhos. Tinha vindo de longe, agora habitava ali, não tinha mais ninguém a não ser aqueles dois padrinhos: um irmão dela e uma mulher de lá, da freguesia, que botara a mão a eles. Eram pobres, mesmo pobres, daquela pobreza que nasce na miséria dos bairros e se vai espalhando pela falta de emprego, de dinheiro, de uma casa digna, de quase tudo.
Chegou o dia do batismo e eu a prever, apesar da preparação, que seria mais uma daquelas celebrações que acontecem só porque toda a gente se batiza e pronto. Resolvo fazer tudo no batistério, na forma mais simples, um quarto de hora, vinte minutos e vamos embora. Apareceram os pais. Só pela forma como se apresentaram, como se vestiam, pressenti que usavam roupas emprestadas: ele enfiado numas calças pretas de pregas, anos noventa, e uma camisa cinzenta maior do que as medidas do corpo. A mãe enfiada num vestido preto, que bem me recordo, desajeitada naquela roupa que não era dela, a puxar uma ponta no ombro, a ajeitar debaixo do braço. Estavam nervosos, já não sabiam bem o que fazer, o que responder. Descansei-os. O meu primeiro rebate de consciência aconteceu ao olhar o rosto da mãe durante a celebração. Não era bonita. Umas sobrancelhas quase unidas no topo do nariz, uns olhos cinzentos desbotados, traçados desajeitadamente na cara, a boca resgada muito acima, a deixar pouco espaço entre o lábio e o nariz. Tanto ela como o pai olhavam-me, durante a celebração, com uma atenção ansiosa, com medo de falhar mas também com o respeito e a seriedade de quem está a viver uma experiência quase única.
A mãe tinha a menina ao colo, segurando-a com um carinho quase desmesurado. A menina estava totalmente tapada com uma manta. Pedi-lhe que descobrisse a cabecinha da bebé para o primeiro gesto da cruz. Foi então que vi a mãe tirar, com um cuidado raro, o manto da cabecinha. A menina estava doente. Tinha o cabelinho crescido, preto, mas com grandes falhas de cabelo e, no lugar do cabelo, umas manchas amareladas cobriam, como uma caspa, a maior parte do seu couro cabeludo. A mãe olhou para mim, quase envergonhada. Era o seu bebé, o seu tudo, aquele anjinho, que ainda mal tinha aberto os olhinhos para este mundo e já sofria sem saber o que é sofrer. Talvez por isso o amor de mãe fosse tão exageradamente evidente.
Na hora do batismo, a mãe levanta um pouco a criança diante da pia batismal e, ao levantá-la, levanta-se-lhe também a saia, acima das coxas, do limite das meias de vidro. Delicadamente, o delicado fotógrafo pede-lhe para ajeitar a saia. Ela faz um ah! Fica muito vermelha, olhando para mim, padre, na esperança de que eu não tivesse visto. A criança sempre a dormir, apenas com um pequeno movimento, quando a água fria lhe caiu sobra a cabecinha desfigurada.
Aquele casal, aquela mãe que talvez não tivesse jeito para nada senão para ser mãe absoluta, mãe total, só mãe e mais nada, toda ela amor por aquele bebé que já assumia a condição humana da dor, emocionaram-me. Com ou sem condições, aquela madrinha era a única mulher no mundo que podia ser madrinha: uma segunda mãe, dedicada, forte, desenrascada e materna.
Em todos os batismos, no fim, costumo pegar na criança e apresenta-la às palmas da assembleia. Não o fiz. Peguei na criança e encostei-a ao meu peito, corpinho leve, quase de passarinho. Apertei-a com ternura contra mim. Cheguei-a ao meu pescoço. E beijei-a. Na face, nas mãozinhas, nos olhos, na cabecinha doente. Cobri-a tanto de beijos até as lágrimas me começarem a rebentar nos meus olhos fechados, a lembrar-me daquela quadra de Augusto Gil:
Que quem já é pecador/sofra tormentos, enfim!/Mas as crianças, Senhor,/porque lhes dais tanta dor?!…/Porque padecem assim?!…
Foi-me difícil tirar a criança do meu peito. Eu que queria curá-la, cuidar dela, não fiz outra coisa senão entrega-la à mãe, escondendo as lágrimas e aguentando forte aquele nó na garganta que até doía.
Por detrás de cada rosto, de cada porta de casa, há um drama: nunca, nunca julguemos ninguém. Mãe sagrada…
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta feira no Diário Insular.