Pelo padre José Júlio Rocha
“É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro.” (Padre António Vieira, sermão histórico e panegírico nos anos da rainha D. Maria Francisca de Saboia).
Bem me recordo daquele anoitecer morrinhento de há muitos anos atrás. Sei bem do dia, que era doze de Outubro, altura em que Fonte do Bastardo, Cabo da Praia e Porto Martins faziam confluir as suas procissões de velas para o Largo do Recanto, onde um padre, de pé sobre um muro alto, pregava o sermão. O ano deverá ter sido 72 ou 73, isto porque foi certamente antes da Revolução dos Cravos e depois de eu entender um quase nada da vida, com quatro ou cinco anos.
Nesse ano quem pregou foi o padre Pimentel da Casa da Ribeira, conhecido nos botequins e casas de pasto como o “Noventa”, tal era a sua capacidade veemente, por vezes agressiva, de pregar. Falou da guerra, que Portugal estava em guerra no Ultramar. Explicou com minúcia como as balas perfuravam os pobres soldados, como as minas estraçalhavam os seus corpos, como as bombas reduziam a pó povoações inteiras, dizimando tudo. Lembro-me de me agarrar às saias da mãe, num terror de criança, transido de medo de que alguma caísse em cima de nós, por entre a chuvinha miudinha que nos mordia a roupa e a pele. Lembro-me bem do regresso da procissão, eu com pressa por causa das balas e das bombas, minha mãe cantando o que todas as mães cantavam naqueles anos, sobretudo as mães dos filhos em guerra, as mães dos filhos que iam para a guerra, aquela mãe que tinha perdido o filho na guerra: cantavam, com todas as forças dos seus pulmões, “Miraculosa Rainha dos céus… faz com que a guerra se acabe na terra”, esse cântico que dizia, numa das estrofes:
Se em Teu regaço, bendita Mãe,
Toda amargura remédio tem:
As nossas almas pedem que vás,
Junto da guerra, fazer a paz!
Regressámos em paz e, anos mais tarde, soube que o padre Pimentel tinha sido interrogado pela PIDE por ter pregado contra a guerra. Numa guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. E de há alguns anos a esta parte, voltámos a celebrar essas procissões das três paróquias até ao Largo do Recanto, sempre com o mesmo alvo: a paz, de que Maria de Nazaré é Rainha.
A queda do Muro de Berlim, símbolo de uma Guerra Fria que abalou o mundo durante quarenta e cinco anos, veio trazer-nos a ilusão da paz. A União Soviética já não era uma ameaça ao Ocidente e as guerras, quando as havia, bailavam longe de nós. Mas Putin, o psicopata frio, ainda mantém o espírito, não comunista mas belicista, da antiga potência de que ele foi membro destacado no KGB. A guerra é, para ele, um instrumento lícito de poder. Já o demonstrou no massacre de Chechénia, na invasão da Geórgia e na tomada das regiões da Crimeia e do Donbass. Isto para além das purgas internas, onde inimigos, adversários ou incómodos vão sendo eliminados cirurgicamente, à boa maneira de Estaline. O que o czar de Moscovo não percebeu ainda, talvez porque viva numa bolha de poder, é que vai perder esta guerra. Vai perdê-la porque ninguém a vai ganhar: nem a Rússia, nem a Ucrânia, nem a Europa nem o mundo. Vamos todos perder. E com que custo! Se Putin julgava atravessar a Ucrânia como faca quente em manteiga, a esta hora já percebeu que se enganou. Como vai ele safar-se sem perder a face? Eis a questão. Não há memória de que Putin tenha cedido em alguma contenda, tenha dado o braço a torcer, tenha recuado um passo. A única solução positiva seria a queda de Putin. Como? Alguém me diga, que eu não sei.
Já são mais de dois milhões os refugiados ucranianos e nós, os Açores, provavelmente também vamos receber famílias, famílias sem homens, só mulheres, crianças e idosos, vítimas inocentes desta loucura estúpida, criminosa e trágica. A Polónia já recebeu cerca de um milhão. A Europa abriu os braços, sem olhar a meios: é um país irmão que se vê devastado por uma guerra sem nexo nem sentido e não podemos voltar-lhes as costas.
E, no entanto, vejo-me diante de uma fotografia de há uns anos atrás, durante a Guerra na Síria, em que Putin – e de que maneira! – também meteu o bedelho. A foto é dramática: nela está um pai, barba curta e cabelo desgrenhado, a boca aberta num grito, olhos fechados de quem chora aos berros, correndo, descalço e a segurar as calças com uma mão, por uma rua que é só escombros. Segura ao colo, com a outra mão, a sua filha, dois ou três anos, olhos fechados num choro, boca aberta num grito, como o pai. Fogem de um tanque, das bombas, dos tiros, fogem da guerra, não sabem para onde fogem. Os refugiados da guerra na Síria, no Iraque, em África dormem agora à neve, ao frio, ao relento, encurralados em arame farpado às portas da Europa, a morrer de fome ou afogados nas praias da Turquia ou nas águas do Mediterrâneo, expulsos da sua terra, odiados em terra alheia. Agora, com os olhos crispados de fome e miséria, com a alma em frangalhos, veem os autocarros dos refugiados ucranianos serem recebidos de braços abertos por quem os rejeitou.
Há qualquer coisa que não bate bem no meio disto tudo. Ou melhor: o que é que bate bem?
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.