Por Renato Moura
Durante dias tentámos imaginar a aflição do Rayan, o menino marroquino, caído na profundeza de um buraco de dezenas de metros. Com horas de emissão nos canais de televisão, vimos a angústia dos pais; assistimos ao persistente esforço das equipas de resgate. Constatámos a solidariedade de tanta gente e a ela humanamente nos associámos.
Infelizmente o pobre menino não teve tempo, naquele dia fatídico, para brincando o acabar feliz; talvez a única brincadeira dele fosse correr por ali, junto ao buraco deixado por irresponsáveis; talvez não houvesse brinquedo algum na segurança do local onde habitava.
Logicamente muitos dos nossos raciocínios obrigariam a pensar em crianças, no drama da subnutrição e do falecimento, pela fome, de tantas, em muitos locais do mundo. Ou na aflição do naufrágio e afogamento de tantas crianças cujos pais embarcaram na ânsia de encontrar uma vida de dignidade impossível de obter nos seus países.
Vimos tanta sensibilidade perante o drama do infeliz Rayan; o acontecimento gerou uma onda mediática compreensível e justa. Mais uma vez se percebeu a força dos órgãos de comunicação social na fixação da atenção sobre os acontecimentos, na criação da emoção e no arrastamento da solidariedade.
Certo, tudo quanto se acompanhou e noticiou. Mas seguramente contrastará, cada vez mais, com a deficiente cobertura dos dramas humanos vividos em tão variadas zonas deste mundo, afectando adultos, mas especialmente crianças sem responsabilidade pelos acontecimentos e sem capacidade para os ultrapassar. E não seria também humano e mobilizador se fossemos massacrados pela comunicação social com essas tragédias, com a denúncia dos responsáveis e com a indiferença de quem os poderia resolver, ou sequer atenuar?
Não obstante as crenças religiosas, provavelmente muitos de nós pensamos que o Rayan tinha o direito de ter sido feliz, um bocadinho mais, ainda cá. Mas os crentes sabem que foi para Deus. O seu padecimento atroz, durante dias, seguramente lhe dá crédito para interceder por outros: pelos que não têm brinquedos; pelos que não têm comida e correm risco de morte.
Infelizmente há tanta irresponsabilidade por parte de quem não quer ver os buracos onde estão milhões de seres humanos! E isso acontece dentro de países pobres cujos governantes são milionários à custa da corrupção e protegidos pelas ditaduras; e à porta de entrada de países apregoados como humanistas e na vanguarda das civilizações; e nas terras onde moramos!
Que mundo!!! Se ao menos o choque iluminasse a realidade…