Por Carmo Rodeia
Estava a fazer um périplo sobre as notícias do dia e eis que deparei com um artigo de opinião de José Luís Martins na Agência Ecclesia e parei porque fiquei sugestionada com a expressão que li logo nas primeiras linhas e que peço de empréstimo para este meu Entrelinhas: “O céu começa em mim, mas a porta é aberta no coração do outro. Só quando sou bom para o outro é que sou bom para mim, e não funciona ao contrário”.
Sabemos que há pessoas no mundo que apenas são para si mesmas e que os outros existem quando fazem falta mas sempre numa perspetiva de meros figurantes de uma história monologada, em que o centro é sempre o próprio, esquecendo-se tantas vezes desse mandamento cristão que é “faça-se em mim segundo a tua vontade”. E quando assim acontece, por mais profissões de fé que façamos, torna-se muito difícil sermos com os outros de uma maneira franca e total.
Sei que não estou a descobrir a pólvora, mas às vezes também importa refletir em voz alta, cada pessoa é um mistério e por vezes convivemos com elas diariamente, anos e anos a fio, e chegamos ao fim sem as conhecermos. Não é que isso seja mau porque a presunção do mistério leva à descoberta do outro, à identificação da sua riqueza para além do que se vê. E esse é um desafio permanente, inesgotável. O amor tem esse encanto, que não se esgota e leva sempre duas pessoas a procurarem conhecer-se e entender-se, colocando-se cada um no lugar do outro. Descobrindo-se e redescobrindo-se. Não é disso que estou a falar. Esse é o verdadeiro mistério e não o egoísmo que decorre dessa falta de capacidade de se colocar no lugar do outro. Aquilo de que José Saramago dizia no Ensaio sobre a Cegueira: “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses”, seja qual for a motivação. Dito de outra forma: uma espécie de esquizofrenia, de negação, que Saramago tão bem conta no seu livro Ensaio sobre a Cegueira, que é de uma enorme atualidade.
Não vou contar a história do livro; apenas direi para o que importa neste Entrelinhas que a história da cegueira começa num único homem, durante a sua rotina habitual, que de repente fica cego. As pessoas que com ele contactam são colocadas em quarentena pelo Governo. A força da “epidemia” não se consegue suster e o mundo fica cego; apenas uma mulher mantém a visão e confronta-se com uma realidade marcada pelas lutas de poder, pela obediência, pela ganância, pelo desejo de vingança, pela vergonha, pela humilhação…
A obra acaba quando subitamente, o mundo cego dá lugar ao mundo imundo e bárbaro.
As relações entre as pessoas também podem ser isto, sobretudo quando, cada um de nós, não consegue sair do seu egoísmo e, cobardemente, põe em causa o presente e o futuro de outros. As relações entre as pessoas não são fáceis; hoje, se calhar como ontem, mas como vivo hoje prefiro falar deste tempo, vejo que é muito difícil cada um de nós abdicar do seu umbigo e pensar no outro. A vida, que se expressa em verdadeiro desejo de comunhão, não pode permitir esse egoísmo. Ainda que existam momentos de dúvida, de fadiga, de desânimo, e até de raiva, o homem é mais do que a sua condição animal. Tem de ser mais.
Recuso-me a acreditar que o mal possa ser considerado um estado normal dos homens, porque acho que no coração de cada homem reside sempre algo de bom e de bem, mesmo quando as feridas provocadas pela sua ação corroem para além da sua própria alma.
Quero acreditar muito nisso, mas às vezes custa tanto compreendermos e é difícil não guardar mágoa.
“O céu começa em mim, mas a porta é aberta no coração do outro. Só quando sou bom para o outro é que sou bom para mim, e não funciona ao contrário”. Palavras certas…