Duas vezes mãe

Pelo padre José Júlio Rocha

O ano de 1980 marcou definitivamente a história da ilha Terceira, deixando uma marca indelével na sua estrutura física e cultural, e um selo na mente dos que por cá habitavam nessa altura. Foi o famoso sismo de 80, do qual nos levantámos a troco de sacrifício e coragem.

Por essa altura eu tinha onze anos e andava na telescola da Fonte do Bastardo, a aprender português e matemática, geografia e história, ciências da natureza e religião e moral, ajudado pela arte de dois grandes professores, em sabedoria e humanidade: o professor Borges e a professora Rosa. A professora Rosa, locutora na Rádio Lajes, chegou a ler, nessa emissora, uma redação minha, intitulada “Viagem ao Centro da Terra”, inspirada em Júlio Verne. Fiquei inchado de orgulho.

O grande sofrimento chegou quando minha mãe, então com 38 anos, começou a cuspir sangue e a sentir dores estranhas e agudas pelas costas abaixo, na zona do tórax, com pneumonias recorrentes e dolorosas. Foi-lhe diagnosticada uma doença pouco comum e com nome esquisito: bronquiectasia no lóbulo inferior do pulmão esquerdo. Fora essa doença que, nos idos dos anos cinquenta, levara minha avó à morte, em meio de sofrimento, tinha minha mãe doze anos.

A única solução era operá-la, tirando metade do pulmão, foi essa a sentença do grande doutor Tobias Amarante, insigne pneumologista jorgense. Em casa, o ambiente ficou pesado, minha mãe cada vez mais magra, a mingar, a mingar, quarenta e alguns quilos, e nós os cinco, pai e filhos, naquela constante agonia da dúvida, o fantasma da morte a pairar, obsessivo, nas nossas almas. Destinou-se que o João Paulo e o Duarte, os mais novos, iriam passar o período de ausência de minha mãe em casa da tia Natália, enquanto eu e o Hernâni ficaríamos em casa com o pai, junto com os avós paternos, porque uma casa sem mulher é exatamente como uma casa sem mulher.

Em outubro, já eu estava no início do segundo ano da telescola, Maria da Conceição deu entrada no serviço de cirurgia do Hospital do Santo Espírito de Angra, acho que numa sexta-feira, para ser operada na segunda. Lembro-me de a irmos visitar ao hospital no domingo, véspera da delicadíssima operação, a primeira daquele género nos Açores.

Naquele dramático domingo, aperaltámo-nos todos e partimos para Angra. Cada um levava o seu presente para a mãe. Recordo o belíssimo ramo de flores que o João Paulo trazia, quase maior do que ele. Eu, por mim, comprei um terço na Casa Bispo da Praia, um terço castanho, bem me recordo, que envolvi em algodão e coloquei numa caixinha de cartolina branca, docemente concebida numa aula de trabalhos manuais. Foi nesse dia que andei pela primeira vez de elevador. Percorremos o longo corredor da cirurgia das mulheres e entrámos na enfermaria. Minha mãe estava de pijama, sentada na cama, a conversar com algumas visitas. Quando nos viu entrar soltou um grito “ai os meus ricos filhos” e abraçou-se ao minúsculo Duarte. Lembro-me como se estivesse a acontecer agora mesmo. Com o presente na mão, virei as costas à cena e encarei-me com um espelho retangular que andava por aquelas bandas. A boca tremia em biquinhos, lágrimas dançavam, teimosas e quentes, na base dos olhos. Um nó apertava-me a garganta quase até não poder respirar. Sempre tive uma vergonha estúpida de chorar diante de gente e, naquela altura, aguentei as lágrimas para dentro, a alma aos bocados, nem uma palavra me saía da boca. Não conseguia. O Hernâni, afogueado e com os olhos vermelhos, já tinha passado a fronteira para o lado das lágrimas. E os mais pequeninos choravam porque, naquela sala cheia de gente, a emoção caíra pesada, diante de uma mãe a abraçar os seus filhos. Lembro-me de meu pai sair em lágrimas, a fungar como uma criança, levado por alguém, acho que por meu tio Josezinho. Tínhamos a perfeita consciência de que aquela poderia ser a última vez que víamos a nossa mãe. Há quem saiba o que isto é.

Chegou a segunda-feira fatídica. Agarrei-me a um terço de prata velho e meio estragado e levei-o para a escola. As aulas passaram por mim sem eu dar por elas. Um terremoto de sentimentos transia-me o peito. Já pensava em ser padre e tinha a certeza de que Nosso Senhor e Nossa Senhora haviam de ouvir as minhas súplicas. Nunca rezei tantos terços como naquele dia. Foi a caminho da escola, foi durante as aulas, foi no intervalo, quando me escondi no lugar mais recôndito do recreio, a rezar, a rezar.

Ao fim da tarde soubemos que tinha sido um sucesso, mas os dias seguintes seriam delicados. A operação fora longa e perigosa. Tiraram-lhe metade do pulmão, deixando uma cicatriz nas costas, costurada a 57 pontos. O recobro durou quinze dias, mas aí já falamos de ressurreição, de visitas festivas ao hospital com o João Paulo, o mais temerário, a andar para cima e para baixo no elevador pequeno, enquanto metade do hospital esperava que ele parasse.

Estava meu pai na barbearia quando lá entrou alguém vindo da farmácia vizinha, onde havia telefone. E disse: “Oh Manel. Tens um telefonema para ti. É do hospital.” Meu pai sentiu uma dor de barriga dantesca e quase se foi abaixo. Correu, numa ânsia e num receio para a farmácia, com medo do pior. Mas foi o melhor: que ele pegasse num táxi e fosse buscar a esposa, que ela tinha tido alta. Foi a festa em casa, ela a ser tratada como uma pedra preciosa, porque não é frequente ter mãe duas vezes.

O resto é história, até hoje, com Maria da Conceição, aos 78 anos, ainda aí para as curvas, porque, como diz o ditado, mulher doente, mulher para sempre. Graças a Deus.

Desta e doutras histórias aprendi uma lição que tenho cada vez por mais certa: quem não ama não sofre. Ou melhor: só sofre quem ama.

(Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio)

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