Por Carmo Rodeia
Quarta-feira será de cinzas. Começa a Quaresma. No ano passado ainda conseguimos celebrar as cinzas, podendo participar na Eucaristia. Este ano, iniciamos a Quaresma de olhos postos na Páscoa, em confinamento, à espreita de uma pequena nesga que nos permita celebrar o Ressuscitado.
Aprendemos na iniciação cristã que a Quaresma é tempo de jejum, de oração e de esmolas. Mas, hoje, mais do que darmos é importante darmo-nos, e a partir daquilo que nos pede este tempo- proximidade e presença- reorientarmos a vivência da Quaresma.
Não poderemos participar na Eucaristia, porque as celebrações continuam a decorrer sem assembleia, mas podemos aproveitar este tempo, alimentando-o da esperança assente num diálogo íntimo com Deus que nos há de ajudar a sermos testemunhas do Seu amor, do Seu consolo e do Seu animo e levá-lo a quem dele precisar.
Por estes dias, têm sido abundantes as reportagens sobre lares e sobre as iniciativas que têm surgido para mitigar o isolamento e a solidão dos mais velhos de entre nós.
Vem-me à memória “A morte é a curva da estrada” de Fernando Pessoa, onde o poeta lembra, com uma acutilância que fere, que “morrer é só não ser visto”.
Quantos dos nossos velhos já morreram permanecendo de olhos bem abertos, mas cansados de solidão? Quantos de nós somos órfãos de pais vivos, sem que disso tenhamos consciência?
Talvez porque já estou a meio da idade e estas coisas pesam; talvez porque a velhice me bateu à porta inesperada e prematuramente com uma nova mãe que tenho de aprender a conhecer; talvez porque a pandemia me (nos) deixou mais isolada(s), sinto como minha a dor de todos os mais velhos. E revolto-me, não diante de um bicho que nos isola mas diante do isolamento que criamos em volta dos nossos, da impotência para compreender a velhice.
Lembro-me bem do que foi a agonia da minha mãe quando se viu incapacitada para tomar conta da sua mãe, minha avó, com 96 anos. Até essa data tinha vivido na sua casa e cumpria religiosamente o périplo do cabeleireiro semanal, de braço dado com uma empregada tão velha quanto ela. As demências da idade, a falta de visão e a incapacidade para tomar conta de si interromperam uma vida independente e por conta própria desde a viuvez.
Como se “A terra fosse feita do Céu” como prossegue Pessoa, a minha mãe queria ser presença na vida da mãe. Levou-a para casa, até não poder mais. A minha Avó acabou por ir para um lar, onde passou menos de um ano, de onde a minha mãe regressava sempre de coração partido.
Na família “Nunca ninguém se perdeu” porque todos procuramos que os mais velhos de nós “existam como nós existimos”. Não é fácil! Aliás, é duríssimo.
A velhice não é divertida, como diz aquele ditado americano. It´s not funny! É verdade!
Ser idoso é ter que começar do zero a todo o momento e fazer isso muitas vezes, obrigado a reaprender coisas básicas, que havíamos inclusive ensinado aos outros por toda a vida. Coisas simples, que ficam de uma complexidade assustadora, como caminhar, organizar os próprios espaços, cuidar da alimentação e da higiene, sair de casa, comunicar. Acordamos um dia e nada disso é tão óbvio quanto era antes. E a vontade não deve ser outra senão desistir. Vejo isso todos os dias nos olhos da minha mãe. Até há uns meses, era isso que verbalizava. Agora já nem isso…
Na oração de dezembro deste ano, o Papa pedia que rezássemos pelos idosos: “Um povo que não protege os avós e não os trata bem é um povo que não tem futuro! São os idosos que oferecem a sabedoria da vida. Eles foram encarregados de transmitir a experiência da vida, a história de uma família, de uma comunidade, de um povo”. Sinto que grande parte da minha história me está a fugir.
Rezar é importante. Mas, se calhar é pouco. Rezarmos em conjunto talvez seja melhor, porque significa que estamos presentes e de mão dada conseguimos compreender-nos.
Estamos habituados a pensar nos idosos como se vivessem um tempo suplementar, como se tivessem deixado de construir a história, esquecendo-nos por exemplo de Abraão, que aos 75 anos foi “chamado por Deus para iniciar uma nova história, quando pensava que a sua já tinha terminado, como nos lembrava recentemente o cardeal D. José Tolentino na abertura do primeiro encontro mundial da pastoral do idoso.
Cada um envelhece à sua maneira. E a velhice pode ser uma oportunidade para viver de forma mais reconciliada, pacificadora, espiritual e atenta. Mas também pode ser o seu contrário, ainda que resistamos.
Nesta Quaresma, de todos os isolamentos confinados, temos de aprender o valor da esmola que se diz em migalhas através dos olhos , de um sorriso ou de uma festa. As migalhas que sempre nos alimentaram independentemente da idade. As migalhas que se dizem “eis-me aqui”. Este é o verdadeiro encontro com Deus. E a Quaresma, esse tempo de trabalhar a esperança, há de ser isso este ano.