Pelo padre José Júlio Rocha
Mary é uma americana, 37 anos, ativista dos direitos humanos, descendente de famílias conservadoras, e que tem um irmão ligado à política republicana. Dedicou-se a estudar a questão premente do racismo nos Estados Unidos.
Casada com Peter, 40 anos, um casamento de conveniência, de que nasceu uma filha que agora tem oito anos. Peter trabalha numa agência financeira, engravatado todos os dias e enterrado em adrenalina laboral, yuppie com todas as letras, fumando tabaco aquecido à porta da agência e discutindo as últimas jogadas da bolsa, no frenesim incontrolável de levar a vida para a frente e ganhar dinheiro a todo o custo, porque é a todo o custo que se ganha dinheiro, mesmo que seja só com um clique do dedo mindinho no teclado do computador.
Nova Iorque, 2018. Mary engravidou inadvertidamente. Uma gravidez não planeada, acidental, e Peter não ficou contente. As gravidezes acidentais são um problema considerável no rico mundo ocidental. Complicam a vida, disturbam o futuro, atravancam os projetos devidamente programados. Na idade em que eles estão e no programa de vida que delinearam, um filho, agora, não vem trazer nada de bom. A nenhum deles traz conforto. Mudar fraldas, acordar de noite com os berros do bebé, perder horas a dar de mamar, a cuidar, a enfrentar o enfadonho tempo de perder tempo a fazer crescer uma criança não é conciliável com a vida que escolheram.
Peter não tem dúvidas: o aborto é a fácil e óbvia decisão. Mary tem dúvidas. É o instinto maternal que fala. Mary acusa Peter de falta de sensibilidade, é um filho, uma vida, um ser que, mesmo não programado, deve ser acolhido. Peter acusa Mary. Ela não percebe que toda a vida dos dois derruirá porque mais um filho nesta altura vai descarrilar a já titubeante vida do casal. É inconveniente, no mínimo. As vidas profissionais dos dois vão sofrer com isso.
Para salvar o que resta do casamento e das profissões, Mary entra numa clínica onde a tratam com infinita delicadeza. Sai de lá livre de problemas e pronta para recomeçar, outra vez, a vida, junto com o seu marido, que não ama, mas que tolera, porque a vida tem que continuar assim.
Esta é uma das consequências nefastas da liberalização da interrupção voluntária da gravidez. Em muitos casos, o aborto não é um drama de vida ou de morte para a mulher. É apenas mais um método contracetivo, uma
operação fácil, sem incómodos, uma escolha sem rasto de problemas de consciência.
Bem sei que o que é legal não é necessariamente moral. Bem sei que uma lei que despenaliza a eutanásia não obriga ninguém a morrer, bem como uma lei que despenaliza o aborto não obriga ninguém a abortar. E, no entanto, permanece lá, intacto, o busílis da questão, aquilo que se quer esquecer mas não se consegue, porque é uma espécie de pedrinha no sapato que incomoda, por mais que queiramos esquecer o incómodo: a dignidade da vida humana por nascer.
Quando foi condenado em vil processo, Galileu Galilei foi obrigado a retratar-se, a jurar o contrário daquilo que descobrira, a declarar que a terra permanecia parada e que o sol é que se movia à sua volta. Galileu terá murmurado então: “Eppur si muove” (e, no entanto, move-se). Sim. Move-se a vida humana por nascer, move-se a questão a que não podemos fugir.
Tenho a sensação que, diante da questão do aborto, há sempre hipocrisia: hipocrisia quando o aborto é proibido e se assobia para o lado, fingindo não haver problema perante os abortos clandestinos, em condições de vão de escada, ou perante o turismo abortivo dos que têm mais dinheiro. Hipocrisia quando se liberaliza e se assobia para o lado, fingindo terem-se resolvido todos os problemas, mesmo tendo, diante dos olhos, a trave gigantesca da dignidade da vida humana por nascer.
Tudo isto me traz à ideia também a posição do atual presidente dos Estados Unidos, o católico Joe Biden, demasiado permissiva em relação à questão do aborto, demasiado “pro choice”, como dizem lá. Confesso que me incomoda. Não é uma questão menor.
Mas não me faz ter saudades nenhumas da administração anterior, liderada por um presidente errático e narcisista, mentiroso (30 mil mentiras em 4 anos) e racista, que fez renascer ódios antigos e dividiu os EUA como nunca desde a Guerra Civil. A cobertura aos supremacistas brancos, desde os “Proud Boys” ao movimento “QAnon”, o discurso belicista e virado apenas para os seus devotos apoiantes, a mentira suprema de que estas foram as mais fraudulentas eleições da história do país, culminaram na invasão ao Capitólio, que humilhou os Estados Unidos diante do mundo e dos seus próprios olhos.
Por causa dele, o futuro da América é bem mais escuro do que claro. Não acredito que um homem destes, que não respeitava ninguém a não ser o seu próprio umbigo, tivesse, apesar das suas políticas, o mínimo respeito pela vida humana por nascer.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.