Pelo Padre José Júlio Rocha
O animal mais manso que conheci até hoje foi uma vaca. Quase toda negra, apenas com umas manchas brancas nas quatro patas, o que sugeriu o inevitável nome de Calçada.
A Calçada foi comprada por meu pai em 1980, tinha eu onze anos, pouco depois de o terramoto ter mudado a cara da nossa ilha. Eu andava na telescola, cujas aulas começavam à uma da tarde. Foi por isso que fiquei responsável pela Calçada. Todas as manhãs, às sete horas, levantava-me e percorria a pé os dois quilómetros e meio que separavam a paterna das courelas do Pico das Favas, onde meu pai tinha cinco cerrados de erva por onde se passeava a mansa bezerra.
A Calçada estava prenha, no início da sua primeira gravidez. Era um animal ainda novo. Lembro-me bem da primeira vez que a vi. Trazia às costas uma saca com folha de milho. A Calçada estava no meio de um cerrado, ainda lusco-fusco porque inverno, e ali ficou parada, a olhar para mim, com olhos mansos e curiosos, sem medo nem confiança. Despejei a saca e ela saboreou com prazer a iguaria das folhas de milho. Ao segundo dia, quando me viu de saca às costas, correu alegremente para mim e ganhei uma amiga. Foram dois anos de amizade. Ela costumava dançar feliz à minha volta, lambia-me as mãos com a língua rugosa, esfregava carinhosamente a cabeça nas minhas costas. Eu matava as moscas cavalas que lhe atazanavam o pescoço e fazia-lhe carícias. Satisfeita e farta, deitava-se a ruminar e eu também me deitava, cabeça encostada ao seu pescoço, a ler “Constantino: Guardador de Vacas e de Sonhos” de Alves Redol, sem compreender nada do neorrealismo. Achava-me um Constantino, que guardava uma vaca e muitos sonhos, naquelas manhãs frias de inverno, naquela doçura da paisagem verde dos nossos campos lindos.
Os problemas começaram quando um rapaz, razoavelmente da minha idade, que eu não conhecia de parte nenhuma, me interpelou, numa manhã, a meio caminho do Pico das Favas, perguntando-me se queria lutar com ele. Chegou-se a mim, olhou-me com aquela agressividade dos rufias infantis e eu tive medo. Eu, que adormecia a contar formigas no pátio da casa, tímido e introvertido, sempre tive medo de brigas. Fugi cobardemente e, a partir daí, quando passava pela casa onde o rapaz morava o meu coração borbotava de receio.
Voltou a encontrar-me. As pernas tremiam-me. Voltou a ameaçar-me. Fugi outra vez. À terceira não foi de vez. Chamou-me maricas, coisa que, naquela altura, era ofensa digna de uma guerra mundial. E eu apanhei com o “maricas” pela cara fora e segui o caminho, com as pernas a tremer, enquanto ele me perseguiu e ameaçou durante uns bons dez minutos.
Nunca contei isso a ninguém, nem ao pai nem à mãe nem aos irmãos. Tinha vergonha do meu próprio medo.
À quarta vez ele veio mais ameaçador, olhando-me com arrogância e desprezo nos olhos: “quando é que combinamos uma briga?” O medo é também pai da coragem. E eu, sem hipótese de fuga, atirei-me para a frente e disse: “arranja um amigo e eu falo com meu irmão. Combinamos uma briga a quatro.” Ele recuou um passo. Vi medo nos olhos dele e a coragem passou do seu lado para o meu: “quando quiseres”, disse-lhe.
Não falei com o meu irmão. Ele não arranjou nenhum amigo. À quinta vez que nos vimos ele foi amigável e perguntou-me o que é que eu fazia todas as manhãs por aquele caminho. Ficámos amigos durante mais umas semanas e, depois, nunca mais o vi.
A anatomia da agressividade humana é um dos assuntos mais estranhos que conheço. Enchemo-nos de coragem perante o medo, enchemo-nos de medo perante a coragem. O problema é quando isso passa de uma guerrilha de crianças para uma peleja de adultos, para assuntos de política e de liderança internacional. As motivações são diferentes, o esquema é o mesmo.
Tomemos um exemplo: uma jornalista na China – não por acaso cristã – foi a primeira a informar o mundo da realidade e do perigo da covid-19. Foi condenada a quatro anos de prisão, onde está a ser barbaramente torturada apenas por ter dito uma verdade que todos nós constatamos. O quinto ano será num campo de reeducação, onde lhe hão de lavar o cérebro. O mesmo está acontecer aos jovens líderes dos direitos humanos de Hong Kong. A China e a Rússia são os maiores assassinos de jornalistas do mundo. E vão continuar a chacina da liberdade e dos direitos humanos perante a mais vergonhosa passividade do Ocidente. Porquê? Porque a coragem está do lado deles e o medo está do nosso lado. O esquema do meu conflito com o puto da minha infância é o mesmo esquema da geopolítica internacional. Só a escala é diferente.
Gostava de acrescentar que a Calçada teve um filhote, lindo e luzidio, e continuou a lamber-me as mãos com humildade e bondade. E eu continuei a ler Júlio Verne e Charles Dickens reclinado sobre o seu pescoço, enquanto ela ruminava deitada e feliz. Foi uma simbiose.
Talvez os animais e a natureza tenham alguma coisa a ensinar-nos. Não sei.
Mas de uma coisa tenho a certeza: quando vires um político acusar os jornalistas de todos os males que vêm ao mundo, não tenhas medo. Ele não passa de um reles cobarde aos berros.
*Este artigo foi publicado esta sexta feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio