Nova encíclica apresenta fraternidade e respeito pelos direitos humanos como alternativa à «ilusão global» de desenvolvimento
O Papa publicou hoje a sua nova encíclica ‘Fratelli Tutti’ (Todos Irmãos), traçando um cenário de “sombras” para denunciar o que qualifica como “globalismo” do mercado de capitais, que responsabiliza pelo aumento de desigualdades e injustiças sociais.
“O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais”, escreve Francisco, num texto dedicado à “fraternidade e amizade social”.
O documento, primeiro do género em cinco anos, apela a uma “globalização dos direitos humanos mais essenciais” e aponta, como exemplos, a necessidade de erradicar a fome ou combater o tráfico de pessoas e “outras formas atuais de escravatura”, que apresenta como “vergonha para a humanidade”.
Falando num mundo sem rumo, o Papa propõe a redescoberta de uma “dimensão universal capaz de ultrapassar todos os preconceitos, todas as barreiras históricas ou culturais, todos os interesses mesquinhos”.
“Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio”, alerta.
Francisco alerta para a tenção de “ignorar a existência e os direitos”, defendendo na sua encíclica a “amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”.
“A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade”, precisa, numa reflexão sobre a ligação destes conceitos à liberdade e igualdade.
Para o Papa, o mundo “massificado” não resolve as questões da solidão, mas “privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência”.
“Muitas vezes hoje, enquanto nos enredamos em discussões semânticas ou ideológicas, deixamos que irmãos e irmãs morram ainda de fome ou de sede, sem um teto ou sem acesso a serviços de saúde”, escreve.
A encíclica ‘Fratelli Tutti’ propõe que os vários projetos económicos, políticos, sociais e religiosos tenham em mente a “inclusão ou exclusão da pessoa que sofre” como elemento de avaliação.
“É necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres”, observa Francisco.
Papa propõe fundo mundial contra a fome, financiado por atuais despesas militares
“Com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres”, refere.
Francisco propõe um ideal de não-violência, particularmente em relação à guerra e à pena de morte, considerando que estas “nada mais fazem que acrescentar novos fatores de destruição no tecido da sociedade nacional e mundial”.
O documento recorda que o Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma “legítima defesa por meio da força militar”, mas refere que tem havido uma “interpretação demasiado larga deste possível direito”.
“Conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes”, observa o Papa.
Para Francisco, “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível ‘guerra’, pedindo que a discussão deixe o plano teórico e se centre nos “civis massacrados, como ‘danos colaterais’”.
“Às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas”, aponta.
Quanto à pena de morte, a nova encíclica sublinha que “a vingança não resolve nada” e que as decisões judiciais devem procurar “evitar novos crimes e preservar o bem comum”.
“Hoje, afirmamos com clareza que ‘a pena de morte é inadmissível’ e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo”, assume, condenando em particular “as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais”.
Em 2018, o Papa Francisco ordenou a alteração do número do Catecismo da Igreja Católica relativo à pena de morte, cuja nova redação sublinha a rejeição total desta prática.
“Todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das pessoas privadas da liberdade. E relaciono isto com a prisão perpétua”, afirma.
A ‘Fratelli Tutti’ saúda os 75 anos de existência das Nações Unidas e a experiência dos primeiros 20 anos deste milénio para sublinhar que “a plena aplicação das normas internacionais é realmente eficaz e que a sua inobservância é nociva”.
Francisco destaca que a reconciliação exige memória e que há acontecimentos – como o Holocausto ou os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – que não se podem esquecer.
“Também não devemos esquecer as perseguições, o comércio dos escravos e os massacres étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros factos históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos”, prossegue.
O Papa realça que os cristãos são chamados a amar todos, incluindo os seus inimigos, mas precisa que “amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz”.
Papa rejeita «dogma de fé neoliberal» no mercado
“O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja”, escreve, num texto divulgado pelo Vaticano.
A encíclica, primeiro documento do género em cinco anos, realça que a “fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”.
O Papa condena a “especulação financeira”, marcada por uma “ganância do lucro fácil”.
Segundo Francisco, é necessária uma reforma da Organização das Nações Unidas e da “arquitetura económica e financeira internacional”.
“O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres nem acima do respeito pelo ambiente”, escreve.
O texto define a solidariedade como “pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns”.
Este documento, dirigido a católicos e não-católicos, convida a “lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais”.
O Papa lamenta a instrumentalização dos conflitos pela “economia global, para impor um modelo cultural único”.
Francisco espera que a atual pandemia tenha um desfecho diferente da crise financeira dos anos 2007 e 2008, na qual considera ter-se perdido a oportunidade de promover uma “nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual”.
“Alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Ma o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controlo obrigou, à força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns”, escreve.
A ‘Fratelli Tutti’ procura contrariar o discurso da meritocracia e sustenta que ninguém pode ser excluído pelo seu local de nascimento ou condição social.
O Papa realça que as pessoas oriundas de famílias com boas condições económicas “seguramente não precisarão dum Estado ativo e apenas pedirão liberdade”.
“Obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas doenças”, prossegue.
Propondo um novo modelo de convivência para a humanidade, Francisco espera por uma “transformação da história que beneficie os últimos”, considerando que “a grande questão é o trabalho”, pelo que condena a “obsessão por reduzir os custos laborais”.
Francisco retoma as suas críticas à cultura do descarte, realçando que “partes da humanidade parecem sacrificáveis”
“Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem”, afirma.
O Papa reconhece um aumento da riqueza, mas “sem equidade”, o que levou a “novas pobrezas”.
“Crises fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome. Reina um inaceitável silêncio internacional”, denuncia.
Nova encíclica critica ressurgimento de populismos, racismo e discursos de ódio
“A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”, alerta Francisco.
A encíclica aponta o dedo a “novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”.
No texto o Papa convida a deixar de parte o “desejo de domínio sobre os outros”.
“Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum”, escreve.
A reflexão parte da categoria teológica do “amor político” para sublinhar a importância da ação legislativa e executiva para a construção de uma sociedade melhor.
“É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política”, exemplifica Francisco.
O Papa refere que as preocupações dos responsáveis políticos não devem ser as sondagens, mas “encontrar uma solução eficaz para o fenómeno da exclusão social e económica”.
“Só com um olhar cujo horizonte esteja transformado pela caridade, levando-nos a perceber a dignidade do outro, é que os pobres são reconhecidos e apreciados na sua dignidade imensa, respeitados no seu estilo próprio e cultura e, por conseguinte, verdadeiramente integrados na sociedade”, afirma.
“É necessário pensar a participação social, política e económica segundo modalidades tais que incluam os movimentos populares”, acrescenta, lamentando em particular a “intolerância e o desprezo perante as culturas populares indígenas”.
O Papa aponta o dedo a “movimentos digitais de ódio e destruição”, mostrando a sua preocupação com o crescimento de “formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro”.
O texto sublinha que a conexão digital pode “isolar do mundo” e adverte para a “troca febril de opiniões nas redes sociais”, muitas vezes com base em informações falsas.
“O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos”, sustenta.
encíclica liga estes discursos de ódio a “regimes políticos populistas e a “abordagens económico-liberais”, segundo as quais seria necessário “evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes”.
Francisco sublinha, a este respeito, que o racismo é um “vírus que muda facilmente” e “está sempre à espreita”, em “formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos”.
“De novo nos envergonham as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas”, escreve.
“É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno”, escreve.
A encíclica é o grau máximo das cartas que um Papa escreve e a expressão ‘Fratelli Tutti ‘ (todos irmãos) remete para os escritos de São Francisco de Assis, o religioso que inspirou o pontífice argentino na escolha do seu nome.
‘Fratelli Tutti’ foi assinada, simbolicamente, este sábado, em Assis, junto ao túmulo de São Francisco – e não “junto de São Pedro”, no Vaticano, como é tradição – sendo dirigida aos católicos e “todas as pessoas de boa vontade”.
“Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”, escreve o Papa.
Francisco alerta para o esvaziamento de ideias como “democracia, liberdade, justiça, unidade?”
O documento cita em várias ocasiões a inédita declaração sobre a fraternidade humana que foi assinada em Abu Dhabi (2019) pelo Papa e pelo imã de Al-Azhar, a mais prestigiada instituição do Islão sunita.
“Comprometamo-nos a viver e ensinar o valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo o ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter”, escreve ainda.
‘Fratelli Tutti’ tem oito capítulos, com 287 parágrafos, duas orações conclusivas e 288 notas.
As duas anteriores encíclicas do atual pontificado foram a ‘Lumen Fidei’ (A luz da Fé), de 2013, que recolhe reflexões de Bento XVI, Papa emérito; e a ‘Laudato Si’, de 2015, sobre a ecologia integral.
O antecessor de Francisco publicou três encíclicas, no seu pontificado (2005-2013); antes de Bento XVI, João Paulo II assinou 14 encíclicas em 26 anos e meio como Papa.
(Com Ecclesia, Lusa e Vatican News)