Pelo Padre José Júlio Rocha
Mateus Leal desce a Canada do Biscoito, já quase no fim da rua, perto da estrada regional. Apoia-se num bordão de conteira, casaco puído no ombro direito, setenta e alguns anos em cima da pele. Estamos em finais dos anos oitenta do século passado e o ambiente é solarengo de verão.
De repente, Mateus pára, apoia-se no bordão e olha para uma janela aberta. Do lado de dentro da janela está uma mulher, mais ou menos da idade dele, cabelo pintado de loiro. Passam-se longos minutos e eles continuam a olhar-se, alheados. Trinta metros mais atrás estou eu a observar, estupefacto, esse encontro. Não passaria de um momento casual, sem importância que merecesse estas ou outras linhas, não fossem os antecedentes daquele encontro.
Cinquenta anos atrás, anos trinta, ainda não rebentara a Segunda Guerra, ainda a ditadura de Salazar era criança, a Fonte do Bastardo tinha acolhido um padre novo, o padre Isaías, que, durante mais de vinte anos, liderou a Igreja naquela terra. Não era homem de palavras doces e dizia o que tinha de dizer, o que lhe granjeou alguns dissabores. Truculento e imprevisto, Isaías vituperava contra aqueles livres-pensadores que não vinham à missa. E naquele tempo, na Fonte do Bastardo, só havia três homens que não iam à missa. O jovem Mateus Leal era um deles.
Mateus apaixonou-se perdidamente por uma das mais bonitas jovens da freguesia, a Inês, loira e linda, filha de boas famílias, educada e muito católica. Mateus não dormia de noite. Inês também não. Estavam os dois apaixonados. Namoraram, mais às escondidas do que às claras. A família de Inês nunca aceitaria aquele namoro da filha com um homem que não ia à missa, não rezava o terço e tinha ideias que assustavam as almas simples. O namoro deu brigas e discussões em casa dela, proibida de ver o amado, e Mateus arranjava sempre algum estratagema para a encontrar. Deu brado. Falava-se.
Foi então que a família de Inês decidiu partir para o Brasil. Mateus enlouqueceu. Berrava nas serras e nos picos, gemia nas vinhas, chorava nos matos, andou perdido no meio da gente, nunca mais namorou, nunca casou, viveu sozinho no meio de abelhas e livros o resto da sua vida.
Para não morrer começou a escrever e a ler compulsivamente. Escreveu poemas, peças de teatro, conheceu a cultura, era a memória histórica da freguesia. Construiu um salão na freguesia para acolher a cultura e as danças de carnaval, interessou-se pelo espiritismo, pelas religiões, pela História. Foi um dos fundadores da filarmónica lá da terra. Tudo o que cheirasse a cultura tinha o dedo dele. Lembro-me de visitar a sua casa, repleta de estantes e coisas antigas. Lembro-me das pessoas terem medo e fascínio por aquele homem misterioso e enigmático, vizinho e muito amigo do meu avô. Gostava de mim. Dizia que eu ia ser um grande homem na teologia e nos cânones, e eu ainda a dar os primeiros passos no seminário maior.
Numa das vezes que fui a casa dele, falou-me do amor. Da sua Inês, perdida para sempre no Brasil. Inês tinha criado família. Ele ficou-se pela solidão.
Fim dos anos oitenta do século passado. Eu, com vinte anos, parado na Canada do Biscoito, coração aos saltos, observo Mateus, com setenta e tal, apoiado no bordão de conteira, casaco puído no ombro direito, estacado no meio do caminho, a olhar para uma janela aberta. Do lado de dentro da janela está Inês. É a primeira vez, em mais de cinquenta anos, que se encontram.
Será que o amor sobrevive a tanto tempo e a tanto espaço de ausência? Não sei. Mas gostava de escrever um livro sobre o Romeu e Julieta da Fonte do Bastardo.
*Este Texto foi publicado no Diário Insular desta sexta feira, na rubrica Rua do Palácio