Por Carmo Rodeia
Daqui a um mês, sensivelmente, entraremos na estação onde me encaixo melhor: o outono. Não se trata de um estado de alma, ou de uma vocação especial para gostar de dias curtos e noites longas, que antecipam o cinzento dos céus, por entre a chuva que ameaça, ainda tímida, e o vento que aprende a assobiar de novo, quantas vezes a anunciar tempestades pelas outras estações. Este gosto pelo outono prende-se, pelo contrário, com uma inexplicável disponibilidade para aproveitar o que esta estação propicia para o recomeço.
Como nos dias das grandes limpezas domésticas em que nos livramos de quase tudo: o que não presta, o que já não serve, o que precisa de ser reutilizado noutra função, o que precisa de outro lugar, de outro rumo para as coisas e para a vida.
Por isso, tenho para mim que o outono não é a estação do fim da esperança; é sim o ponto de partida para uma vida nova. Agora que penso nisso chego à conclusão que quase todas as grandes decisões da minha vida passaram pelo outono. Setembro, outubro, novembro… meses grandes de dias pequenos, como que a partir da sua pequenez gritassem a sua urgência.
A palavra aponta para isso mesmo: uma altura de crescimento, uma época propícia à abundância e à maturidade, capaz de nos desafiar na aventura de viver. É isto que me fascina no outono.
A própria natureza no-lo diz: as árvores despem-se das suas roupas antigas, deixam de alimentar as folhas que trazem da Primavera e do Verão, que amarelecem e morrem, e deixam-nas cair por terra, libertam-se do antigo, do que já não lhes serve, do que já pesa. Como se cada folha caída fosse a esperança imediata de uma nova flor. Na vida, como na natureza, livrarmo-nos do que nos pesa não é esquecer nem abandonar: é criar espaço para o novo. Como naquela canção “Mendigo de Deus”: descalcei as sandálias/pisei o grão que dá vida/fiquei aguardando a lição/de cada folha caída.
Depois são os perfumes de outono: as cores e os sabores dos frutos; os primeiros fumos das chaminés paradas pelo calor, a castanha misturada com o sal a estalar no barro, o cheiro da canela que invade docemente o marmelo e a maçã à volta de um talhadim, o sabor de uma boa conversa enrolada numa manta de frente para a primeira lareira do ano, com um bom chá, a leitura mais aturada… Tudo cheira a recompensa.
Já tenho saudade do outono!
“O que é bonito neste mundo e anima,/ é ver que na vindima/ de cada sonho/ fica a cepa/ a sonhar outra aventura…/ E que a doçura que se não prova/ se transfigura/ numa doçura/ muito mais pura/ e muito mais nova.”
Quanta razão, Miguel Torga! É muito consolador e aconchegante o outono, se o soubermos aproveitar.