Pelo Padre José Júlio Rocha
Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho, deve pensar o Pedro, 17 anos, ensonado ao almoço, no canto mais esquecido da mesa cheia de amigos dos pais, calado como melão, dentro daquele metro e oitenta vagamente amolecido, magro de tanto crescer. Não é filho único mas é como se fosse, com duas mães, já que a irmã tem um filho quase da idade dele. Anda quase sempre triste e de costas voltadas para o mundo, barba a espigar, não é feio, o rapaz, embora, como todos os adolescentes, ache que a beleza lhe passou ao lado. Há uma tristeza absorta quando olha para ninguém, uma melancolia nas palavras lentas que saem baixas daquela boca distraída.
Por mais amigos que tenha sinto-me sempre sozinho, deve berrar para dentro, enquanto os pais desembucham conversas cotas com os amigos cotas. Passara a noite a jogar ao computador, cinco da manhã afora, conversando ao microfone do auscultador ausente, num desses jogos em que há amigos tão distantes como baleias que cruzam, solitárias, os mares do norte. Assim parecem os nossos adolescentes. O futuro não é miragem nem é nada, não há amigos para as ocasiões porque os amigos são pouco mais que ocasionais, a vida é uma espécie de águas paradas, sem direção nem fundo.
Parece que o mundo inteiro se uniu pra me tramar. Deve ser assim que os adolescentes saboreiam a própria solidão. E eu recordo as discussões de meu pai comigo e com os meus irmãos, depois da meia-noite, da uma, das duas, chegados a casa nas noites de tourada, de terço, de passeio à Cidade ou à Praia no carro do amigo mais doido, emprestado pelo pai. O mundo dos nossos adolescentes divergiu do da nossa juventude: agora permanecem dentro dos ecrãs, horas a fio fechados nos quartos, indiferentes a uma certa realidade que os fere. Olhávamos as raparigas orgulhosas com olhos ardentes de humildade e um certo receio curioso daquele mundo feminino por descobrir. Eles olham-nas com aquele certo desdém de quem as acha importunas e implicantes, cansados das suas mensagens dengosas. A sexualidade cansada determina uma solidão sem nome.
Perdido nas avenidas e achado nas vielas, deve encontrar-se o Pedro, que tem ideias muito próprias sobre o aborto, a eutanásia, o casamento entre pares do mesmo sexo, a emergência ambiental e os pais, mas tem dificuldade em escolher que par de calças vai vestir no dia seguinte para não mostrar a ninguém. São os pais que o vão buscar à esplanada mais longínqua, duas ou três da manhã, nas raras vezes que sai para os amigos, sempre no bar do costume, telemóvel na mão a maior parte do tempo, num sorriso ausente de quem está em dois mundos ao mesmo tempo.
Ter de encarar o futuro com borbulhas no rosto, que lhe irritam sobretudo a testa e abaixo das suíças curtas, e o amanhã sempre e longinquamente escurecido. Não lhe falta nada, graças a um Deus ausente, e falta-lhe quase tudo. A sociedade de consumo uniu-se para lhe oferecer um simulacro de felicidade imediata a troco do dinheiro dos pais. Desde os brinquedos no quarto azul-bebé da sua primeira infância até ao último grito das novas tecnologias. Deu-se-lhe tudo menos o futuro. Ele tem medo da palavra “amanhã”. E eu, que nunca tive uma bicicleta sonhada, nem se quer um reles triciclo, que me contentava com vinte escudos numa tourada, tinha no futuro a esperança de que se agarra a uma vontade indómita de crescer.
A solidão dos jovens é uma solidão estranha, diferente, talvez mais dramática do que a solidão dos velhos, mais enigmática, desconhecida, não suficientemente estudada. Os velhos choram, lamentam-se, cramam a sua desgraça. Os jovens calam-se e pronto.
Bem lá no fundo, a juventude foi sempre igual ao longo dos tempos. Mudaram as circunstâncias. E de que maneira.
*Este texto foi publicado no Diário Insular esta sexta feira, na rubrica Rua do Palácio.