Pelo padre José Júlio Rocha
Acordei hoje a pensar que a humanidade, bem lá no fundo e, se bem puxada, tem uma bondade intrínseca. Nestes dias fomos capazes de coisas extraordinárias. Como fomos capazes de renunciar ao futebol, aos debates temerosos que quase todos os dias enchiam os nossos canais informativos à volta de um penálti, de um fora de jogo, de um erro do VAR? Como fomos capazes de renunciar aos nossos jogos sagrados do fim-de-semana, às nossas bandeiras clubísticas, como fomos capazes de olhar com um sorriso benévolo Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira unidos no mesmo objetivo de salvar o futebol?
Seria possível, noutras circunstâncias, renunciar aos nossos pequenos luxos, aos nossos passeios e banhos de mar, à nossa esteticista e ao corte de cabelo da moda, ao perfume mais caro ou à viagem na Rayanair a Lisboa para comprar no Colombo ou para três dias no Algarve?
Quem nos diria que acataríamos a ordem de passar dois meses quase sempre fechados em casa, renunciando ao ar fresco e ao sol, ao café da manhã, à cerveja no canto do bar ou à jantarada com amigos no restaurante mais em conta? Aceitaríamos, noutras circunstâncias, a renúncia à celebração do abraço e do beijo, do afeto e do carinho, tão latinos como o nosso sangue?
Os que iam à missa, os que iam casar, os que iam batizar os seus filhos aceitaram, com paciência exemplar, todos os adiamentos da fé e da celebração, numa conformação nunca vista em dois mil anos.
E as touradas, as Sanjoaninas, as festas de verão e as férias?
E o trabalho? E a ausência dele? E o teletrabalho e o lay-off? Estamos dispostos a renunciar a parte do nosso vencimento sem contestações nem greves, a aceitar, sem reivindicações, a mais que provável impossibilidade de aumentos num futuro mais ou menos longo, a conviver com uma crise que, como fatalidade da natureza, nos obrigará a sacrifícios bem mais desgastantes do que os da crise que, a duras penas, nos fomos libertando.
O mundo vai aguentar muito mais? Pouco sabemos da nova normalidade que, aos poucos, se vai impondo nas nossas vidas. Pouco sabemos do amanhã. Mas me parece que uma coisa é certa: não queremos o mundo igual ao que era antes. Em primeiro lugar, e depois de vermos os resultados desta travagem a fundo no ambiente global, queremos que o mundo em que vivemos continue a respirar. Exigimos medidas sérias e eficazes para que a natureza seja respeitada e um esforço global para que todos os efeitos das alterações climáticas não ameacem o nosso amanhã.
Exigimos ao mundo uma globalização da solidariedade, uma política global concertada, eficaz e fundada numa peleja pela paz e pelo bem comum universal, umas Nações Unidas com mais poder e eficácia e com os grandes do mundo preocupados com a harmonia global e não com o crescimento dos seus umbigos. Exigimos prioridades. É isto que vai acontecer? Pergunta de um milhão de dólares.
Pouco sabemos do amanhã. As democracias são uma benesse que tem pouco mais de um século, uma duração espúria na história da civilização. E são o mais frágil dos regimes. Temo que as autocracias ganhem terreno, como está a acontecer em muitos lugares, perante a passividade timorata dos súbditos. Temo que as bipolarizações políticas e sociais encontrem, neste terreno movediço, pasto para afirmarem a sua intolerância, e que uma catástrofe natural dê lugar, como não é incomum na História, a várias catástrofes humanas, como sejam o espargir de guerras e conflitos em muitos pontos do planeta, o espezinhar de direitos humanos e o desprezo pelas grandes conquistas dos últimos séculos.
Temo que o desemprego, a miséria e a fome que, certamente, nascerão desta travagem da economia, degenerem em rebeliões dantescas, revoluções anárquicas, migrações em massa e refugiados em números bíblicos.
Temo, muito concretamente que, perante a estupidez egocêntrica das potências do Ocidente, que teimam em manter divisões e alimentar conflitos entre si, consiga estragar o seu já periclitante domínio, e ofereça, de mão beijada, todo o poder político, económico e social ao regime chinês, que, com a paciência das tartarugas e das baleias, imporá os seus princípios: uma paz sorridente e absolutamente podre, uma obediência servil cheia de abundância e vazia de liberdade. Uma distopia que George Orwell ou Aldous Huxley quase adivinharam: teremos uma certa sensação de felicidade como os cães amarrados a uma corda têm quando o dono chega ao pé deles para lhes dar de comer.
Já dizia Dostoievski: “Um problema se coloca ao homem: liberdade ou felicidade; liberdade com sofrimento ou felicidade sem liberdade. E a maioria dos homens escolhe o segundo caminho.”
Temos, realmente, dois caminhos. O segundo é o mais fácil. E o mais satânico.
*Este artigo foi publicado no Diário Insular, na rúbrica Rua do Palácio.