Pelo padre José Júlio Rocha
De todas as bandas desenhadas cómicas que o mundo nos oferece, a saga do gato Garfield é, de longe, a que eu prefiro. Numa das vinhetas mais interessantes, ele aparece como “o vingador da capa”, uma espécie de super-herói à americana, que entra numa loja de pássaros, abre todas as gaiolas e grita triunfante: “Estais livres! Estais livres!”. Os pássaros, no entanto, com medo do gato, enfiam-se todos para dentro das suas gaiolas e nenhum deles foge. Intrigado, Garfield volta a fechar todas as gaiolas e grita: “Estais seguros! Estais seguros!” Esta é uma belíssima metáfora dos nossos dias: ter de escolher entre a segurança e a liberdade.
O 25 de Abril de 1974 foi um grande dia. Permitiu-nos viver em democracia e em liberdade, poder escolher o nosso futuro, ter liberdade de expressão, não nos submetermos ao jugo de uma ditadura (de direita ou de esquerda, não esqueçamos também o 25 de Novembro).
A liberdade tem os seus riscos? Claro. Mas melhor, muito melhor, mil vezes melhor o pós do que o antes do 25 de Abril. Há quem se queixe da corrupção que esta Terceira República veio permitir no nosso País de brandos costumes. Verdade? Somos tão ingénuos ao ponto de acreditarmos que, no Antigo Regime, não havia uma corrupção pior do que a que vivemos? Havia, sim, e muita. O que não havia era liberdade de expressão e de imprensa capaz de denunciar essa corrupção e vivíamos numa pacífica ignorância. No tempo de Salazar a balança comercial era sempre positiva enquanto agora está quase sempre em défice? À custa de quê? De um Portugal pobre, sempre à beira da miséria e com focos de fome e uma taxa de analfabetismo gritante. E por aí adiante.
É, por isso, fundamental celebrar sempre, todos os dias e, de um modo especial, todos os anos, esta data fundante da nossa democracia e da nossa liberdade. A questão que se põe nestes dias não é se devemos comemorar o 25 de Abril mas como o devemos comemorar.
Vivemos há mais de um mês em confinamento. O Presidente Marcelo e a Assembleia da República decretaram o, até há pouco, inimaginável Estado de Emergência, renovado duas vezes, que não suspende a liberdade dos cidadãos mas a condiciona de um modo que seria impensável noutras circunstâncias. Os portugueses, na sua esmagadora maioria, obedeceram: ficaram em casa, não fizeram ajuntamentos, não comemoraram em comunidade ou sequer em família alargada festas, aniversários, celebrações, a própria Páscoa, festa Maior do Cristianismo. Cumprimos e somos, justamente, um exemplo para a Europa e para o mundo. Só funciona o que tem mesmo, necessariamente que funcionar. O Parlamento, por exemplo, com um número mínimo de deputados, tem de continuar em funções. Nisso foram também exemplares.
Celebrar o 25 de Abril na Assembleia da República com convidados, ao que parece 150, é, sobretudo, um mau exemplo dado pelo próprio órgão que decretou o Estado de Emergência, para todo o País. Mesmo que se respeitem as distâncias sociais decretadas, não deixa de ser um ajuntamento. E a questão está toda aqui: o mau exemplo e a confusão que, sem nenhuma necessidade, muito menos nesta época, se está a gerar. O País reagiu, dividiu-se, e a convulsão, que transparece nas redes sociais e nos media clássicos, demonstram uma divisão absolutamente a evitar neste tempo. No meio da convulsão, o Presidente da Assembleia da República Ferro Rodrigues veio comportar-se – já não é a primeira vez – como um elefante numa loja de porcelana. “O 25 de Abril tem de ser e vai ser celebrado na Assembleia da República”. Está o caldo entornado. Com ou sem razão, milhões de portugueses perguntam-se, agora, se não podem eles também celebrar as suas festas, ir às praias, ir à missa, fazer o que lhes dá na real gana. Não havia necessidade.
Havia muitas outras formas, eventualmente mais belas e simbólicas, de celebrar esta data tão importante. Recordemos, por exemplo, as celebrações à volta da Semana Santa, o Papa Francisco só, diante de uma Praça de São Pedro vazia, uma das imagens mais potentes destes dias e que deu à Páscoa uma dignidade, um simbolismo e uma beleza que nunca mais sairão da nossa memória.
Há, é claro, quem aproveite esta oportunidade para manifestar e dar visibilidade ao seu desdém pelo 25 de Abril, semeando ainda mais a confusão entre os portugueses. Porquê e para quê tudo isto, quando o que está em causa é a saúde e a vida de muitos de nós, a sustentabilidade do nosso Serviço Nacional de Saúde ou até a dignidade e a coerência da própria Assembleia da República? Não havia necessidade.
Seria muito mais belo celebrar esta data de uma forma simbólica, criativa, sem ajuntamentos desnecessários, uma forma que ficasse no coração dos portugueses, que os unisse e não os dividisse numa época tão sensível como esta, em que não precisamos de confrontos mas de unidade porque temos nesse vírus um inimigo comum.
Ainda vamos a tempo.