Pelo padre José Júlio Rocha
Embarquei para o Seminário Menor, em São Miguel, a oito de Outubro de 1981. Ia andar de avião pela primeira vez, ia conhecer um mundo novo, ia ser um grande homem. A excitação daquele dia teve a sua queda no abismo quando meu pai, depois de me ter arrumado a mala no porta-bagagens do táxi, me disse: “Vai dizer adeus à tua mãe.” Foi uma espécie de descida abrupta ao inferno da saudade que se me apegou.
Parti sozinho, treze anos, primeira viagem de avião, naquele AVRO velho da Sata. Ponta Delgada enorme, mastodôntico o edifício do seminário, intransponível a distância que me separava de todos os outros, do mundo, da casa paterna que nunca mais seria a minha. Um mês depois apareci na televisão, a ajudar na missa transmitida pela RTP Açores. Era domingo. Meu pai acabara de sair de casa para visitar meus avós. Passou pelo botequim das “Quatro Gaiolas” onde, ao domingo, se reunia a malta que não renunciava ao primeiro copo e ao segundo cigarro e à companhia dos camaradas. Estranhou o silêncio. Ninguém estava sentado nas cadeiras da rua. Três ou quatro homens à porta, todos de costas, a olhar para dentro, de onde se ouvia a voz da televisão. Alguém se virou, viu meu pai e disse: “Ó Manel, o que é que estás a fazer aí?” “O que é que se passa?”, perguntou meu pai. “O teu rapaz está na talavisão”. Como um relâmpago, meu pai fez inversão de marcha e, numa ânsia, como os dois discípulos de Jesus a correr para o Túmulo Vazio, de Eugene Burnand, agarrou-se à samarra e voou para casa onde encontrou minha mãe, já lavada em lágrimas, a ver a missa e a minha cara, ou metade da minha cara, aquela que aparecia acima do altar, no metro e meio a que a minha altura podia chegar. Esta cena, para mim comovente, que diz muito da moleza do coração duro do meu pai, contou-a ele próprio e, mais tarde, um amigo que assistira.
Sim, meu pai era um homem duro, que ganhava na barbearia seis contos de rei por mês à altura em que saí de casa, quatro filhos a criar. Não nos beijava senão quando estávamos a dormir. Nunca chorava senão quando minha mãe adoeceu gravemente. Nunca viveu para si. Quando solteiro, o que ganhava ia para a casa paterna. Com mulher e filhos, a sua vida foi a família. Depois dos filhos criados e com a vida arrumada, aos 62 anos, uma demência lenta e inexorável tirou-lhe a possibilidade de viver os dourados anos da velhice.
Já doente, quando lhe dávamos um abraço, debulhava-se num choro silencioso, olhos vermelhos e humildes, como a pedir ou a agradecer que o amassem, que não era um peso para a família. Nunca compreendi bem o silêncio e a resignação com que viveu os 13 anos daquela degradação, que não perdoou nada à sua vida já difícil, a humildade com que entregava o corpo para ser lavado e tratado por nós, aquele purgatório de anos a fio, como se fosse longa expiação pelos muitos erros que não cometeu.
Nesta clausura que já vai em mais de um mês, não deixo de sentir uma certa saudade de ter cinco anos outra vez, sentado no joelho do Manuel Barbeiro, cigarro “Curdos sem filtro” no canto da boca, a ouvir o relato do Porto berrado pelo velho “Nordmende” anos cinquenta. Ou a nomear Bernardo da Velha, Atraca, Rolando, Pavão, Valdemar e Américo, Jaime, Djalma, Pinto, Gomes e Nóbrega, de um velho Póster do F C Porto de 1968. Ou quando íamos três, capacete na cabeça, na velha Lambretta que nos levava à piscina do Porto Martins nos domingos de sol.
A doença envelheceu-o depressa demais. Ninguém gosta de velhos. Já foram o que nós somos, são o que nós seremos e não gostamos de saber isso. Perdoamos, com sorriso benevolente, a arrogância das crianças, não suportamos um defeito de um velho. Temos mais pena dos gatinhos abandonados e dos cãezinhos sem dono do que de um velho sentado pela fome num banco de jardim.
Pudesse eu ter dado a dignidade que a feroz doença tirou a meu pai, dar-lhe o orgulho de ter sido um velho decente, sábio como meu avô o foi. Sentir-me-ia melhor.
Adeus, mais uma vez, pai.
*Este texto foi publicado no Diário Insular, na rúbrica Rua do Palácio