Pelo Padre José Júlio Rocha
Itália, 15 de março de 2020. Morreu um padre, vítima do covid-19. A notícia seria pouco mais que banal – até porque já morreram mais de 50 padres na massacrada Itália – não fossem as circunstâncias estranhas em que se deu. O padre Giuseppe Berardelli, 72 anos, amado pelo povo de Lovere, Bérgamo, tinha, à sua disposição, oferecido pelos paroquianos, um ventilador. Mas, vendo a catástrofe à sua volta, decidiu renunciar a ele em favor de um paciente mais jovem e com família. Acabou por morrer. Exemplos de heroísmo máximo como este são únicos e demonstram que a fé e o amor ao próximo, levados ao extremo de dar a vida, merecem o estatuto inigualável da santidade. E merecem também o nosso silêncio, porque somos demasiado pequenos ao pé de gestos como este.
Introduzi esta história porque, de alguma forma, como padre, me sinto magoado pela leviandade com que vão aparecendo, na opinião pública e, sobretudo, no pântano das redes sociais, afirmações corrosivas acerca do silêncio e da passividade da Igreja perante a pandemia do coronavírus. O veneno destilado, quer com humor sarcástico quer com indignação destruidora, ameaça expandir-se, numa época em que o medo e o pânico convidam a disparar em todas as direções. A Igreja é, como de costume, vítima privilegiada. Perguntam pelo Vaticano, impante de riquezas extraordinárias, escondidas não se sabe aonde, choruda de ouros e apartamentos luxuosos em Roma, que agora assobia para o lado, qual Mister Scrooge de Dickens, pronta a moralizar o mundo e a sua sexualidade, mas apegada ao dinheiro como polvo à pedra. Perguntam por Fátima, recetáculo de milhões, vindos dos ignaros peregrinos e seus sofrimentos, sem se saber para onde correm aqueles rios de dinheiro.
Inclusivamente cheguei a ler, por aqui, que a Igreja é um “lodaçal tóxico e perigoso que mistura a pura e estéril ortodoxia, preconceito, fanatismo, castração psicológica, misoginia estúpida, raivosa, teimosa, estagnação intelectual e espiritual, doutrinação absurda, violência, convencionalismo retrógrado, criminalidade bestial e cumplicidade nojenta.” Sic.
Convém que as pessoas, sobretudo as de boa vontade e que querem conhecer a verdade e não apenas arrotar banalidades ofensivas, saibam que a Igreja, apesar de tudo, e de muitas coisas condenáveis e até deploráveis que se passam, não é aquela instituição decrépita e maléfica que suja o bem-aventurado mundo moderno. Com mais de 100 mil instituições de saúde, de entre as quais quase 6000 hospitais espalhados pelo mundo,
sobretudo o Terceiro, é, de longe, de muito longe, a maior e mais complexa instituição de solidariedade social do mundo. Inspirados nos valores do Evangelho, milhões de seres humanos, padres, religiosos, leigos, profissionais de saúde dão a vida todos os dias, em muitos casos gratuitamente, no silêncio dos seus trabalhos, para que muitas outras vidas, milhões delas, tenham a dignidade que os Estados e muito do resto do mundo não podem ou não querem dar. E os números que acima escrevi referem-se apenas a instituições de saúde, não contando com outras muitas centenas de milhar de instituições de solidariedade social.
As propaladas riquezas do Vaticano, que ferem tantas consciências que, entretanto, se esquecem da exploração capitalista – verdadeiro cancro deste mundo –, não vão para o poço sem fundo da avareza dos cardeais. Vão, em grande parte, para essas instituições. Muitas pessoas abrem a boca ao constatar que o Vaticano anda quase sempre no limiar da falência. Uma das causas está no facto de que no bolo que a Santa Sé destina à solidariedade social não se toca. Fátima segue razoavelmente um trilho semelhante. Há uma máxima evangélica que explica o silêncio da Igreja neste campo: “Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita” (Mateus 6, 3).
Vendam-se as Igrejas e os ouros? Já Esopo, exímio contador de fábulas da antiguidade, nos ensinava muitas coisas com a história da galinha dos ovos de ouro.
Entretanto, são milhares os padres que, só em Portugal, vão consolando espiritualmente o seu Povo, os seus paroquianos, através das redes sociais e de outros meios, celebrando, apelando à calma e à paz, porque, no meio de tudo isto, alimentar a fé não é assim tão inútil como denunciam algumas vozes, muito pelo contrário: mesmo só humanamente falando, neste momento, fé e esperança são pontos cardeais inseparáveis. A Primavera vem sempre depois do Inverno.
E, já agora, quando falarem escreverem, nas redes sociais ou em qualquer outro lugar, tenham em conta uma atitude que já devia ser um lugar-comum: façam-no com fundamento.
*Este texto foi publicado, em simultâneo, no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.