Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Quando se fala de Tarantino, a frase deve ser algo como “no princípio, havia os diálogos” ou então “bem-vindo a dose dupla de violência lúdica”. É verdade que que este último elemento passou a ser visto como violência gratuita para muitos: é uma opinião tão respeitável como outra qualquer.
Desde o primeiro filme, “Cães danados”, o realizador californiano abraçou a sua própria aproximação ao cinema, a marca da sua originalidade confortável: abordar o supérfluo da mais leve cultura americana misturando-o com cultura cinematográfica e conversa de café. Este resumo parece diminuidor para o antigo empregado de videoclube mas, de todo, não o pretende ser.
O génio de Tarantino criou o seu próprio mercado: sem que houvesse oferta (ou procura), o estreante apresentou um produto apetecível, pronto a ser consumido. Tratou o descartável como matéria dos seus próprios sonhos: ladrões de bancos, assassinos, hospedeiras, duplos e escravos negros estiveram sob o holofote.
Em todos os casos, o fascínio com a mentalidade desses míticos atores marginais exprimiu-se em dissertações semi-filosóficas sobre a vida, os hambúrgueres, a Madonna, o direito à vingança e a forma mais humana de se ser assassinado. Isto coexistindo com citações visuais de todos os filmes que consumiu, às vezes em detalhes microscópicos mas sempre reverenciais.
E a fórmula não se esgota aí: é que Quentin tem outro segredo e imagem de marca, a cadeia efeito-causa, a construção da trama que para ele é um cubo de Rubik. Pense-se na sequência da troca de dinheiro em “Jackie Brown” ou na justificação de Bill (“Kill Bill II”) para ter mandado matar a noiva: do alto do seu orgulho, ele declara que a razão foi o amor que tinha por ela (!).
Um exercício particularmente útil é perguntar ao espetador comum qual a duração da cena inicial de “Sacanas sem Lei”. São 23 minutos em que o coronel Landa conversa com mons. LaPadite, enquanto nos é dado ver a família judaica escondida debaixo do chão de madeira. Sem claros indícios, Landa conclui as suas inquisições com um tranquilo, solene metralhar dos fugitivos.
A distinção de Landa, dirá ele próprio mais adiante, é que ele é capaz de pensar como um judeu, algo que o espectador não sabia ao vê-lo acender o cachimbo à mesa e fazer suar de culpa La Padite, da forma o mais casual possível. “Au revoir Shoshannah!”, diz ele à rapariga que será o motor da vingança sobre Hitler. A maior parte das pessoas diz que a cena dura cerca de dez minutos. A isto chama-se domínio absoluto de uma forma de arte.
O palmarés tarantiniano é pois de subversão cuidada dos modelos instituídos com requintes de competência e subtileza. “Pulp Fiction” foi o filme mais influente dos anos 90: alguém acha que existiria um Guy Ritchie sem esse filme? Os filmes policiais 90 puderam finalmente fugir à intriga conjugal e ao retrato monolítico dos maus, embora algumas das imitações sejam intragáveis.
O que nos traz a “Era uma vez em Hollywood”, o filme estreado este mês entre nós, apresentado em Cannes 25 anos depois de “Pulp Fiction”. Por tudo o que já se disse, é compreensível que o fenómeno seja o equivalente a uma final da Liga dos Campeões: pelo menos para a imprensa e os indefetíveis.
“Era uma vez…” regressa às memórias do seu autor, ele próprio um habitante não distante do Rancho Spahn onde o grupo de Charles Manson vivia (quem os batizou de “família Manson”?). O ano é 1969, o mês é essencialmente agosto, do assassinato de Sharon Tate, a esposa de Polanski, e do mítico festival hippie em Woodstock.
O filme centra-se no ator Rick Dalton e na Los Angeles desse período: a viagem personalizada aos perigos de uma carreira no cinema de ação e ao ambiente mesquinho dos bastidores têm um tom mais sério do que é habitual. Ao intervalo, alguém avaliava: -“o filme é uma seca.”
Pois é, os filmes mais honestos recebem sempre esse tipo de consideração profunda. A sombra de Charles Manson e a piada à memória de Bruce Lee não são recebidas por todos com o mesmo entusiasmo, compreende-se. Não querer desvendar os mitos e os episódios anedóticos de Hollywood não tanto.
“Era uma vez…” funciona melhor com quem acompanhou o Tarantino que faz comentário social. A frase não é irónica mas bem podia ser porque ele sempre o foi. A verdade é que a marca violência tem sido relegada para o terceiro ato nos últimos filmes. Aqui, não se esqueça que há um Charles Manson a rondar.
O veredito deve ser equilibrado contudo: trata-se do primeiro filme do realizador em que o argumento é mais previsível. A reconstituição de Los Angeles é perfeita, sim; DiCaprio e Pitt estão muito bem; as homenagens a um cinema que já não existe são tão explícitas como sentidas; a ação e a violência mantêm-se a níveis lúdicos aceitáveis (não se trata de um filme para toda a família, muito obviamente).
Por previsível também se entende uma trama em que os detalhes nem sempre encaixam, pelo menos não como era a norma antes. É o que acontece quando Dalton atira a rapariga ao chão nas filmagens, o filme dentro do filme: estava previsto ou não? Se ela tinha chumaços nos braços, então sim; se o realizador ficou surpreendido, então não estava. É relevante porque Tarantino nunca falhou antes.
São minúcias contudo: o final não parece em nada ser menos satisfatório do que a reescrita da História em “Sacanas sem Lei”.