Por Carmo Rodeia
Lembro-me de quando era miúda de gostar de brincar na rua com quem tivesse disponível, desde a vizinhança da minha idade até àqueles que se faziam presentes sazonalmente, que não iam à escola, e por isso estavam sempre disponíveis. Lembro-me que uma das principais brincadeiras era o queima, uma espécie de “apanhada” em que quem ficava de olhos vendados tinha de encontrar os que se escondiam e depois tocar-lhes. Rapazes e raparigas, todos se agarravam e puxavam para ver quem chegava primeiro à meta, que era sempre o lugar da partida de quem ficava à vista de todos mas de olhos tapados, de forma inocente, sem a maldade que a idade impõe como fronteira. O tacto era uma dimensão natural do jogo, da vida…
O tacto tem sido para mim fundamental ao longo da minha vida. Gosto de tocar nas coisas, nas pessoas, e de fazer a experiência sensorial do abraço. Aliás, sou conhecida entre os mais próximos por nunca me furtar a este contacto físico, da pele…
Na Mística do Instante, Tolentino Mendonça fala da necessidade de valorizarmos o tacto como o grande sentido da amizade e do amor porque é através do tacto – tocarmos e deixarmo-nos tocar- que conseguimos construir as relações na nossa vida, numa espécie de evangelho que bebemos a partir do útero materno, onde o toque é fundamental.
Talvez por isso precisássemos de aprender de novo a importância do tacto como sinal de disponibilidade para o acolhimento. Sem problemas nem barreiras. Como naquela inocência própria das crianças. Mas, infelizmente a sociedade tomou outro rumo e não só não nos tocamos como temos dificuldade em deixarmo-nos tocar. Seja na pele seja no coração.
O que é que isto tem a ver com o título do artigo, estará a interrogar-se quem tiver paciência de chegar até aqui. Mas a verdade é que tem tudo a ver.
Vivemos num tempo em que nos tocamos pouco e deixamo-nos tocar ainda menos. A Europa vive um momento estranho, de alguma cegueira de uns em relação aos outros. Em vez de nos tocarmos construímos barreiras para fingir que não nos vemos sequer. Trocámos as pessoas pelos números. E os números não se tocam. Alcançam-se ou não. Não precisam de ser tocados. São realidades abstratas que, na maior parte das vezes, servem apenas para esconder a realidade concreta das pessoas e transformam-nas em coisas distantes, vagas e anónimas. Na Europa hoje vivemos de números. E há números para todos os gostos. Os principais tratados e documentos europeus estão cheios deles. É a taxa de inflação, o valor da divida publica ou do déficit orçamental, é a medida da tomada, da ficha do televisor ou da torneira por onde corre a água, etc. E sobre as pessoas, o que é que esses documentos dizem sobre as famílias, sobre a qualidade do trabalho, sobre os migrantes…
Numa reunião de bispos europeus, o Papa Francisco lembrou que o contributo dos cristãos para a afirmação europeia deveria passar por recordarem que a Europa não é um conjunto de números ou instituições mas é feita de pessoas concretas. Que precisam de afectos, que precisam de se tocar, serem tocadas e deixarem-se tocar.
“Infelizmente o debate (sobre a Europa) circunscreve-se a uma questão de números; não há cidadãos há votos, não há migrantes há quotas, não há trabalhadores há indicadores, não há pobres mas limiar de pobreza, isto é, a pessoa humana é reduzida a um principio abstracto mais cómodo e tranquilizador” afirmava o Santo Padre.
A Europa precisa de uma cura para a doença dos números e do cansaço que eles provocam. Os números não se tocam mas chateiam e, sobretudo, cegam-nos. Talvez por isso, precisássemos de reaprender o valor do tacto, para vermos melhor as pessoas.
Se calhar, é esta escolha que temos de fazer, ou pelo menos contribuir para que possa ser feita.