Coração vermelho e azul

Por Carmo Rodeia

Por estes dias assinalamos o terceiro aniversário de um dos textos mais belos e profundos sobre o Amor e o amor em família.

Falo da Amoris Laetitia, a encíclica pós-sinodal escrita pelo Papa Francisco na sequência do Sínodo sobre a família e que o Cardeal Kasper, nas primeiras páginas do seu livro “A Mensagem de ‘Amoris laetitia’: uma discussão fraterna”, qualifica não como uma doutrina nova, mas uma renovação criativa da tradição. E, prossegue, recordando palavras de São João XXIII, para lembrar que a Igreja é um organismo vivo e desta forma deve-se inserir no mundo atual, olhando-o, compreendendo-o e apontando-lhe, de forma profética, caminhos.

Hoje, vivemos num período de violências inéditas no mundo. Muitas pessoas são feridas. Também na vida matrimonial há tantas feridas! As situações de casamento que não vingam são cada vez em maior número e muitas dentro de comunidades, de famílias católicas e gente que leva muito a sério a sua  fé e a sua vida cristã. Diria que é um tal manancial de pessoas que passam por esse desgosto que a Igreja tem de ter uma solução e abertura para proporcionar um período de discernimento que as ajude a reerguerem-se.

As pessoas precisam de misericórdia, de empatia, da simpatia da Igreja. E o Papa nesta exortação a que chama a Alegria do Amor, dá sinais desse caminho a vários níveis fazendo de resto jus àquele que tem sido o lema mais marcante do seu pontificado: a misericórdia como resposta aos sinais dos tempos.

Ainda este domingo, na recitação do ângelus, em Roma, a propósito do texto do Evangelho- a mulher adúltera- Francisco lembrou o quão determinante é os católicos rejeitarem o “legalismo” e evitar as “pedras” de condenação sobre os outros, como ensinou Jesus Cristo.

A propósito do Evangelho deste quinto Domingo da Quaresma, o Santo Padre lembrava que “Os interlocutores de Jesus estão fechados na estreiteza do legalismo e querem trancar o Filho de Deus na sua perspetiva de julgamento e condenação. Mas Ele não veio ao mundo para julgar e condenar, mas para salvar e oferecer às pessoas uma nova vida”.

O Papa sublinhou que Jesus Cristo apelou à “consciência” de quem o questionava, arvorando-se em “paladinos da justiça”, para que compreendessem a sua “condição de homens pecadores, que não podem arrogar-se o direito de vida ou de morte sobre um seu semelhante”.

De facto, o ensinamento de Jesus abriu um caminho novo, de “misericórdia”, para que todos os que pedirem perdão possam “começar uma história renovada”, numa vida “nova, bela, livre do pecado, generosa”, como nos lembra de resto o Evangelho de São João por mais que o teu coração te acuse, Deus é maior do que o coração.

O meu filho João uma vez perguntou-me do alto dos seus grandes olhos pretos, cheios de vida e de felicidade, tinha para aí dois ou três anos, e ainda estava dividido entre o amor clubístico do pai (Benfica) que o contagiou e o do avô (Porto), com quem partilhava histórias intermináveis de uma suposta ida à selva que projetavam com detalhe, de que cor era o coração. E de imediato ele próprio respondeu que era vermelho e por isso ia ser do Benfica. Voltou a questionar se não poderia também ser um bocadinho azul, já que o Toni era do Porto e ele gostava tanto do avô. Não me lembro o que lhe respondi exatamente. Mas gostava de lhe ter dito, por palavras que ele entendesse, aquela passagem de São João  em que Jesus disse aos discípulos: “não se perturbe o vosso  coração. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Vou preparar um lugar para vós”.

Sei que foi isso que o João sentiu porque amava os dois e achava que o seu coração teria que ter lugar para os dois. É isto, entre muitas outras coisas, que a Amoris Laetitia vem dizer: que há lugar para todos porque o perdão de Deus é maior que tudo e do que todos. Afinal, com apenas três anos o João já sabia aquilo que ainda hoje nós adultos, dentro da igreja, às vezes parece que não queremos aceitar.

 

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