Por Renato Moura
Um juiz desembargador minimizou, num acórdão, a prática de violência doméstica, em razão de ter sido exercida sobre uma mulher adúltera. Reafirmo o que aqui escrevi, em finais de Outubro de 2017, a propósito, não só, mas também, da fundamentação do juiz.
Decorre, desde então, um processo disciplinar, motivado pelas expressões proferidas no acórdão, conduzido pelo Conselho Superior de Magistratura (CSM), que em plenário decidiu rejeitar o projecto de arquivamento apresentado em Janeiro, determinando mudança de relator, ainda que por apenas oito votos contra sete. O CSM acabou julgando “infração disciplinar por violação do dever de correcção”.
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por inerência presidente do CSM, após a decisão, considerou que as expressões proferidas pelo juiz em acórdãos, nomeadamente ao referir-se à mulher ofendida, “enquanto ‘mulher adúltera’, como ‘dissimulada’, ‘falsa’, ‘hipócrita’ e ‘desleal’ são ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas”. Na defesa da independência dos juízes, como valor fundamental do Estado de Direito, afirmou, todavia, que “o princípio da independência não é compatível, porém, com utilização de expressões que ultrapassam o limite da ofensa ou do respeito devidos a qualquer interveniente processual, seja na fundamentação escrita de qualquer decisão, seja na condução oral de qualquer diligência processual”.
Que mais não fosse pelo que se transcreveu acima, não pode deixar de causar estupefação o resultado ténue da decisão do CSM que – quinze meses depois – se limitou a aplicar ao juiz uma “sanção de advertência registada” com quatro votos a favor (de qualidade o do presidente), vencendo outros quatro a favor de multa, registando-se sete abstenções! E isto sobre a atitude de um juiz, que no acórdão abandonou o plano estritamente jurídico, para se intrometer no campo ideológico e moral, até pretensamente religioso, mas desculpabilizando uma desumanidade!
A violência doméstica é uma tragédia que molesta continuamente muita gente e já mata muitas dezenas por ano, o que não pode ser indiferente aos poderes: legislativo, executivo ou judicial; nem à sociedade em geral.
Nenhum magistrado pode enviar para a sociedade o sinal errado de que a violência doméstica se pode justificar em certas circunstâncias; nem correr o risco de, por falta de dignidade, prudência, sobriedade ou rectidão, se por em causa a confiança nos tribunais e o crédito nos magistrados.