Por Carmo Rodeia
O japonês Akihiko Kondo, de 35 anos, casou-se com uma noiva virtual numa cerimónia formal, em Tóquio. Hatsune Miku é um holograma animado de 16 anos com olhos e cabelo azul. Ele considera-se um homem comum, que pertence a uma “minoria sexual” que não se imagina casado com uma mulher real. A sua esposa acorda-o todas as manhãs e à noite, quando ele lhe liga a dizer que está a voltar para casa, ela acende as luzes e avisa-o quando são horas de ir para a cama.
Não sei como é que tal possa ser, pois não imagino que exista em alguma parte do mundo um enquadramento jurídico para uma iniciativa deste género. Penso que tudo se terá ficado por uma celebração simbólica em que este homem, encenando um matrimónio, jura fidelidade ao holograma.
Este casamento insólito vem plasmado na última edição da revista Sábado e remeteu-me de imediato para o não menos insólito filme “Ela”, protagonizado pelo ator Joaquin Phoenix, que interpreta o papel de Theodore, um escritor solitário, que acaba de comprar um novo sistema operacional para o seu computador e acaba por se apaixonar pela voz deste programa informático (interpretada por Scarlett Johansson), dando início a uma relação amorosa entre ambos. Esta alegada história de “amor”(?), incomum, explora a relação entre o homem contemporâneo e a tecnologia e é naturalmente um ponto de partida para a espécie de esquizofrenia que vivemos no meio das nossas solidões.
Por outro lado, a televisão portuguesa- a SIC-, televisão séria que me habituei a respeitar começou a exibir um reality show intitulado “Casados à primeira vista”, que tem como objetivo casar pessoas desconhecidas e acompanhá-las durante oito semanas. Diz-nos a produção que o casting é rigoroso e o processo “real”. Os casais são escolhidos com base na sua “compatibilidade científica”. O recrutamento é pensado de maneira a que as pessoas não se cruzem umas com as outras até ao derradeiro momento. Até lhes é retirado o acesso às redes sociais. Os “casamenteiros”, se assim os podemos chamar, estão à procura de participantes capazes de aceitar um desafio, autênticos e com capacidade para seguir conselhos. Pepper Schwartz, sociólogo e um dos peritos da versão norte-americana, explicou que o facto de estas pessoas começarem uma relação com um casamento muda a forma como os participantes agem e impacta a noção de investimento na relação.
No entanto, em Portugal, ainda não ouvi ou li uma critica construtiva a tal programa. Sobretudo de gente responsável, cuja opinião conta. Desde logo alguns dos mais ilustres psiquiatras ou psicólogos clínicos que habitualmente comentam no espaço público e têm uma longa e vasta experiência no acompanhamento de casais. Aliás, a Ordem dos Psicólogos estará mesmo a analisar a participação de dois psicólogos no programa devido às questões éticas e deontológicas, que derivam do código deontológico da profissão, de estes profissionais fazerem intervenções psicológicas no espaço mediático.
Esta será, certamente, uma questão ponderosa para qualquer análise mas não é isto que me move.
Estes três exemplos ilustram algumas das faces mais sórdidas e tóxicas com que, direta ou subliminarmente, se amesquinham as relações amorosas, o casamento e consequentemente a família, que não é nem pode ser um conjunto de emoções e estados de alma, que nos são oferecidos por telenovelas e outros produtos do género. E muito menos se constrói e sedimenta nas novas tecnologias.
Podemo-nos rir, alarmar, enfurecer. Ou simplesmente encolher os ombros, mas não podemos deixar de nos interrogar sobre a mentira inerente a tudo isto. Para além, de ser legitima a pergunta sobre a saúde mental e emocional destas pessoas, procurando perceber o que leva alguém a entrar por este caminho ou a alinhar em programas desta natureza e que, em última análise, só pode ser uma tremenda e avassaladora solidão, que a cultura e a vida atuais acentuaram. Buscamos recompensas e lidamos mal com esta solidão, porque não fomos habituados a respeitá-la e a compreendê-la . Como se na vida tudo tivesse de ser partilhado com todos.
Por outro lado, as relações entre pessoas não se constroem a partir de um jogo de `matching´, desenvolvido com base numa avaliação psicológica feita não pelo próprio mas por grelhas mais ou menos cientificas que nos dizem A dá com B ou B com C.
Recuso-me a aceitar que a relação séria entre duas pessoas, seja de amizade ou amorosa, possa ser construída desta maneira. As pessoas conhecem-se, vão-se conhecendo, vão-se sentido uma à outra e não casam sem ter uma experiência disso. Essa história de pessoas ideais para pessoas ideais pode funcionar no papel mas não funciona na vida. Nem mesmo quando, depois de muito conhecimento e de muita luta, se percebe que é mais o que as une do que o que as separa, como na canção do Rui Veloso.
Brincar aos casados já é um pouco demais, acho eu…