Por Carmo Rodeia
Há alguns dias atrás numa conversa de família alguém começou a falar de empregadas domésticas e de como elas cumprem ou não cumprem o que lhes é pedido e qual a relação que têm na casa onde servem. E, pasme-se alguém, porque a conversa para aí derivou, ficou escandalizado porque a empregada, na hora da refeição, sentava-se à mesa com os patrões. Durante uns segundos não queria acreditar em tamanho espanto. Aliás, em bom rigor, nem sei porque é que aquilo veio à baila e era importante ser sublinhado.
Por momentos, confesso, pensei que tinha regressado ao passado mas depois refletindo um pouco melhor e porque estava entre crentes, e a fé não pode ser uma abstração que nos impele só à prática de uma ritualidade estabelecida, senti-me dentro daquela história, e desafiei-me a mim própria não a julgar mas a compreender.
No Evangelho de Lucas (Lc 17,7-10) há uma passagem a propósito desta relação entre o senhor e o servo: “Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado, lhe dirá quando ele volta do campo: ‘Vem depressa sentar-te à mesa’? Não lhe dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, até que eu tenha comido e bebido. Depois comerás e beberás tu’.
Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou? Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos inúteis servos: fizemos o que devíamos fazer’”.
Imagino que muitos de nós, ainda hoje, continuamos a saltar esta página, como saltamos outras tantas que nos falam de humildade, de respeito e de serviço, como se não fizéssemos parte desta história. É um dos grandes perigos da nossa vida: habituarmo-nos a ela sem nos questionarmos, perdendo até a capacidade de nos interpelarmos, e aí a vida toma conta de nós, e começamos a fazer coisas que nada têm a ver com aquilo em que dizemos acreditar. Às vezes basta questionarmos os nossos gestos para perceber que, à custa de os repetirmos, se tornam tiques e manias com imenso impacto nas nossas relações.
E comecei a pensar se esta minha familiar se escandalizou e também tem uma empregada doméstica que come na cozinha, naturalmente, por acaso conhece a pessoa que trabalha lá em casa; se sabe dos seus problemas, das suas inquietações, da sua satisfação ou insatisfação para além da relação laboral que têm, em que uma manda e outra obedece.
O sentar ou não sentar à mesma mesa com a empregada doméstica é apenas a metáfora das relações que temos nas nossas vidas e da forma como as deixamos crescer ou atrofiar; da forma como nos implicamos e atendemos aos outros.
Em São Miguel, sobretudo nas zonas mais rurais, há uma expressão popular que gosto muito e que se aplica bem a esta situação: “sei quem é mas não lhe conheço”. É isto que acontece: vivemos debaixo do mesmo teto, partilhamos espaço mas não partilhamos vida. E por isso uns comem na cozinha e outros na sala. No final cada um vai à sua vida, ciente de que cumpriu o seu papel.
Será isto que a vida nos pede? Se não somos capazes de partilhar a mesa, por esta ou por aquela razão, como seremos capazes de partilhar o coração? Quantos lugares novos abrimos nós para acolher, pensar e interpretar os outros?
Por vezes sinto que somos cada vez mais cristãos para nós mesmos, servindo-nos somente a nós e por isso, somos mais tristes, mais insatisfeitos, mais revoltados só porque o que realmente interessa ficou sabe-se lá onde, perdido numa missa de um domingo qualquer.
Jesus apresentou-nos um Deus frágil, que se anuncia no amor e na misericórdia e não na força nem no poder. Que sentido faz a empregada comer na cozinha?