Por Carmo Rodeia
“A Amiga Genial”, de Helena Ferrante, que acabo de ler, impressionou-me não só pela escrita fácil da autora (cuja identidade verdadeira ninguém conhece) mas porque nos transporta para um retrato notável, cru e violento da pobreza. Na escrita de Ferrante não há lugar para falsas piedades: ninguém é puro de coração só porque é pobre e a pobreza não salva ninguém. Muito menos a pobreza material a que milhões de pessoas estão sujeitas. A pobreza fere a dignidade das pessoas; amachuca-as. Aliás é nos países pobres, onde há falta de quase tudo, que há mais guerras e mortes. Pelo contrário, onde há prosperidade e respeito pela dignidade do ser humano há paz e consequentemente riqueza. Ou deveria haver.
Esta terça feira, Trump fez o seu primeiro discurso sobre o Estado da União, e destacou a necessidade dos norte americanos serem capazes de viver de novo o sonho americano. Aliás, disse o presidente, nunca na história deste pais houve uma oportunidade tão grande para restabelecer a capacidade de sonhar como agora. De alguma forma, Trump já tinha dito isto os líderes mundiais em Davos e com pele de cordeiro, insistiu que tudo o que faz é em nome dos americanos e da prosperidade da América, sem nomear de que América fala. Um país profundamente dividido que votou maioritariamente nos democratas mas que, por vicissitudes da lei eleitoral norte americana, elegeu um presidente republicano, ou melhor trumpista. A diferença, à primeira vista semântica, é mais do que isto. Infelizmente não é só Trump que é trumpista; são cerca de 30% dos norte americanos que votaram nele e que acham que é a melhor solução para combater a pobreza, que ignoram, e fazer renascer à América, que auguram.
No discurso do Estado da União Trump lembrou que não há melhor época para devolver a ideia do sonho americano que esta; prometeu fazer tudo pelo renascimento desse sonho e sobretudo do orgulho de ser norte americano, numa espécie de reafirmação do velho cliché de que a América é uma terra de oportunidades e só não vinga quem não quer. Até pode ser verdade, mas não deixa de ser uma verdade parcial.
Dados de novembro do ano passado indicavam que apesar de ter diminuído em 0,8% o número de pessoas que vive abaixo do limiar da pobreza nos EUA, o país continua a ser o que apresenta os piores índices de pobreza entre os mais ricos. Os pobres são mais de 40,6 milhões, o equivalente a 12,7% da população.
Os dados oficiais revelam, por outro lado, claras disparidades raciais: 22% dos negros (9,2 milhões de pessoas) vivem em níveis de pobreza, assim como 19,4% dos latinos (11,1 milhões) e 8,8% dos brancos (17,3 milhões).
Helena Ferrante na “Amiga Genial”, a que regresso, mostra como a pobreza cria uma cultura de violência que se torna numa identidade, que impede a libertação ou ascensão de quem é dali, um vórtice que puxa para baixo e que abole quase sempre a própria liberdade: o livre arbítrio está ativo, mas o perímetro da liberdade de escolha não existe. E poucos são os pobres que o deixam de ser. Tão grave como a pobreza é a indiferença. O Papa Francisco no Dia Mundial dos Pobres, apresentou-a como o “grande pecado contra os pobres”.
Trump é indiferente aos pobres. Como a maioria dos pobres que nele votou é indiferente aos outros pobres, sabe-se lá porquê.
Trump quer de novo a América grande mas não gosta dos pequeninos que lhe deram força: dos imigrantes, estejam oficializados ou clandestinos.
O Evangelho ensina-nos que no Céu não se valoriza o que se tem mas o que se dá. O presidente norte americano, neste ano de governação, mostrou que tem pouco para dar, e do pouco que ainda poderia ter, reparte-o com que não precisa. A América há de acordar um dia da indiferença… para salvar os pobres, que são cada vez mais.