“O poder político faz política social dividindo para reinar”

A acusação é da Presidente da Cáritas Diocesana. Anabela Borba em entrevista ao PD diz que muitas instituições estão em dificuldade. A fome é “dramática” nas ilhas maiores. 700 pessoas recorreram pela primeira vez à instituição em 2013. Para o futuro fica a promessa do programa Vértice.

Portal da Diocese (PD)- Como vai decorrer a semana da Cáritas diocesana nos Açores, de 17 a 23 de março?

 

Anabela Borba (AB)- A Semana da Cáritas propõe para este ano a reflexão e ação concreta em relação ao tema escolhido a nível nacional “Unidos no Amor, Juntos contra a Fome”.

 

A par de um conjunto de ações locais, variáveis de ilha para ilha, pretende-se que esta ocasião proporcione espaços de reflexão e debate com os cidadãos, e com a sociedade, ao mesmo tempo que durante este período se realiza o peditório público, que decorrerá nas nossas comunidades e estabelecimentos comerciais entre os dias de 17 a 23 de Março.

 

Este gesto público é de uma importância fulcral para a Cáritas, já que reverte a favor dos diferentes projetos sociais concretizados em cada uma das Cáritas de Ilha. Para que o Peditório aconteça, algumas centenas de voluntários saem à rua, apelando à generosidade e à partilha. Um gesto comunitário e também de desafio já que lembra a cada cidadão que todos estamos implicados na construção de uma sociedade mais justa e solidária.

 

PD- E, concretamente aqui nos Açores?…

 

AB- A semana da Cáritas na Diocese, decorre sobre a orientação de cada Cáritas de Ilha, sendo que cada uma, de acordo com as suas prioridades e capacidades, realizará as ações que achar mais convenientes e pertinentes.

 

Assim e a título de exemplo, e porque o tema proposto está integrado na campanha internacional de luta contra a fome “Uma só família humana, alimento para todos”, promovida pela Caritas Internationalis, que tem por objetivo o combate à fome e ao desperdício alimentar, mas também alertar para o respeito inalienável pelo direito à alimentação, realizamos em Angra uma Marcha contra a Fome, esta segunda feira, como 1ª ação da Semana.

 

Convidamos Escolas e Jardins de Infância a participarem, com o objetivo das crianças serem sensibilizadas para os problemas das crianças e das pessoas com fome, e serem solidárias, traduzindo esta solidariedade num gesto de partilha, oferecendo um alimento à Cáritas que os fará chegar aqueles que mais precisam, e ao mesmo tempo serem sensibilizadas para a questão do desperdício.

 

Procurando ir não só aos cidadãos, mas também junto das empresas, iremos realizar com a preciosa colaboração do Departamento de Economia e Gestão da Universidade dos Açores, um seminário de responsabilidade social. Nesse programa será lançado o Programa Vértice, uma iniciativa de colaboração com empresas locais em que os privados irão investir directamente em projectos sociais da Caritas da Ilha Terceira num protocolo que envolve benefícios fiscais, de comunicação e de formação para os parceiros aderentes.

PD- A luta contra a fome e as dificuldades das pessoas, sobretudo das famílias, continua a ser o principal combate da Cáritas. Como tem decorrido essa luta nos Açores?

 

AB- Essa luta é uma luta sem tréguas, com muitas dificuldades, desde logo na angariação de bens alimentares para suprir as necessidades de um cada vez maior número de pessoas. Este problema de pessoas com Fome tem uma dimensão enorme sobretudo nas ilhas de S. Miguel e Terceira. É dramático e é uma violação aos direitos humanos, o direito a alimentação. Existe um número crescente de pessoas que só se alimenta porque dispõe de ajudas sociais!

 

Acresce a este gravíssimo problema o crescente aumento de solicitações de ajuda para consultas médicas, para medicamentos, etc.

 

Sem dúvida que a nossa ação tem como missão combater a pobreza indo de encontro às famílias com mais dificuldades, no entanto, percebemos que esta é uma luta cada vez mais difícil, pois as dificuldades relacionadas com os recursos materiais das famílias estão diretamente relacionadas com o problema do desemprego. Ou seja, uma vez que a nossa principal preocupação é trabalhar no sentido das famílias melhorarem a sua situação a longo prazo, e não só a curto prazo, prestando apoios pontuais, sentimos que é cada vez mais complicado encontrar respostas que permitam alcançar o exercício pleno de cidadania, pois não existe resposta no mercado regular de emprego, apenas Programas de Emprego, que apesar de permitirem a muitos indivíduos o desempenho de uma função, são colocações de curto prazo e sem perspetiva de prorrogação.

 

Podemos afirmar que, apesar de todas estas dificuldades, temos reunido esforços para continuar a dar uma resposta às famílias que estão numa situação de precariedade extrema, trabalhando em articulação com várias entidades e recorrendo ao apoio de algumas empresas, por exemplo, este ano temos a ajuda de uma Grande empresa que nos doou 27500 Euros para socorro imediato em alimentos, que começaram a ser disponibilizados às Cáritas de ilha exatamente esta Semana. É para nós uma ajuda muito valiosa.

 

PD- As dificuldades que a região atravessa e o endividamento das famílias alterou o universo de intervenção da Cáritas?

 

AB- Tenho alguma dificuldade em responder, porque a situação é variável de ilha para ilha, mas julgo que sim, porque se alterou o universo das pessoas que nos procura. E isso, na realidade alterou a nossa ação em algumas áreas, pois existiu a necessidade de realizar uma análise cada vez mais cuidada dos casos, pois os recursos são muito limitados e não nos é possível, na maioria das vezes, apoiar estas famílias pois dificilmente conseguimos apoiar em créditos habitação, devido aos valores em causa. No entanto, temos realizado um esforço por apoiar estes casos, através do Fundo Social de Emergência, criado a nível Regional, e o Fundo Social Solidário, criado a nível Nacional, para apoios a estudantes universitários cujas famílias estão em situação de precariedade devido ao desemprego.

PD- Fazendo uma comparação com outros anos, qual é a verdadeira dimensão da pobreza nos Açores?

 

AB- Infelizmente, considero que a situação está a agravar-se, na Cáritas da Ilha Terceira, o passado ano atendemos 344 novos casos, ou seja, famílias que procuraram pela primeira vez a ajuda da Cáritas. Esta procura está principalmente relacionada com situações de desemprego, cujos rendimentos, por vezes, nem chegam para assegurar a renda e as contas correntes.

 

Nas outras ilhas a situação é idêntica, claro que com mais casos em S. Miguel, cerca de 350 novos casos. Infelizmente das outras ilhas não possuo os elementos.

PD- Este ano, à semelhança do ano passado, o produto da renúncia quaresmal reverte a favor do Fundo de Emergência Social. Quantas famílias já recorreram a ele, onde e como?

 

AB- No total foram atribuídos 49 apoios, sendo que os pedidos foram apresentados pelas ilhas Terceira e São Miguel, 30 casos da Terceira e 19 de São Miguel, dos concelhos de Ponta Delgada e Ribeira Grande. Os apoios prestados visaram essencialmente a ajuda para compra alimentos de medicamentos, óculos, tratamentos dentários, entre outros.

 

Como foi divulgado em todas as paróquias pela Curia Diocesana, os pedidos chegam à Cáritas dos Açores, que de acordo com a prioridade e as disponibilidades do Fundo e em complemento com o Fundo Social, sediado na Cáritas Portuguesa, procede à análise e à disponibilização de verbas.

 

Das outras ilhas e de outros locais não chegaram pedidos.

PD- O Para Francisco diz que o atual modelo económico “mata” e torna as pessoas, sobretudo os mais frágeis “descartáveis”…

 

AB- Essa é realmente a realidade, as pessoas pobres não contam, as suas vidas não valem nada…

PD- Que caminho deveria ser seguido pelos cristãos para inverter este rumo?

 

AB- O caminho do amor. Para os cristãos, a adoção de um estilo de vida mais sóbrio, mais humano, mais próximo, liberto dos vícios que nos levaram a este ponto, onde a economia sirva os homens, onde todos estejamos comprometidos a zelar pela paz e pela justiça.

 

No nosso país, as exigências evangélicas têm hoje e talvez mais do que nunca, a maior urgência e importância. É chocante que a dimensão humana da economia esteja ausente da discussão política e que até mesmo os cristãos se não questionem da justeza das opções que têm vindo a ser tomadas ao longo dos anos.

 

O Papa na Sua mensagem para a Quaresma lembra “Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.” E desafia-nos a construir um estilo de vida, individual e coletivo, mais humano e mais fiel à mensagem do Jesus. Passo a citar o Papa “Como dizia o Apostolo Paulo aos cristãos de Corinto encorajando-os a serem generosos na ajuda aos fiéis de Jerusalém que passam necessidade. – Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza- (2 Cor 8, 9). A nós, cristãos de hoje, que nos dizem estas palavras de São Paulo? Que nos diz, hoje, a nós, o convite à pobreza, a uma vida pobre em sentido evangélico?”

PD- Costuma dizer-se que em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. Nos Açores as dificuldades chegam também às instituições. Os recursos públicos estão a ser bem canalizados e as instituições que trabalham no terreno são suficientemente acarinhadas por esses poderes?

 

AB- Sim, são muitas as dificuldades das instituições. Eu penso que em geral as instituições são acarinhadas pelo poder político, as instituições são parceiras do Estado. O que acontece muitas vezes é que não são tratadas com o respeito e com a justiça que merecem, pelo papel social que desenvolvem. É claro que muitas instituições passam e vão passar um período muito, mesmo muito difícil o que, em muitos casos, irá comprometer a ação social que desenvolvem e que culminará com algumas extinções. Isso não me pareceria grave se não ficassem as preferidas, as mais comprometidas com o poder, mesmo que muitas vezes não sejam as que desempenham um papel socialmente mais relevante junto das pessoas que mais necessitam. O que é importante é que no redimensionamento progressivo da rede seja tido em consideração o impacto das ações realizadas pelas instituições, a capacidade de gestão criteriosa dos apoios concedidos e a satisfação das necessidades reais dos clientes.

 

Infelizmente, ao longo dos anos tenho assistido à forma como o poder político, faz política social, dividindo para reinar, acabando por condicionar a ação livre das instituições, numa política excessivamente top-down.

 

PD- Sempre existiram pobres. Mas a pobreza não tem de ser uma inevitabilidade. Com tantos programas de luta contra a pobreza porque é que mais de 40% das nossas famílias são pobres ou quase pobres?

 

AB- Primeiro, porque a redução da pobreza não é apenas o acesso aos recursos económicos. O acesso aos recursos simbólicos, educativos e culturais tem também de ser assegurado para que mais meios financeiros sejam sinónimo de maior riqueza efectiva e de sustentabilidade. Isso nem sempre esteve subjacente às políticas sociais e o nosso atraso educativo tem décadas.

 

Por outro lado, é fundamental a articulação de esforços entre a rede de apoio para não duplicar apoios, mas também para não criar um mecanismo de conforto prolongado em que algumas famílias se deixam instalar.

 

Além disso, e num contexto em que a disparidade de rendimentos é cada vez maior, num país que é o mais desigual na União Europeia, a taxação do lucro, a responsabilidade social das empresas na distribuição de dividendos pelos seus colaboradores e não apenas por acionistas ou o apoio ao empreendedorismo social e empresarial (sem cair nos excessos da competição feroz e de lucro fácil) são iniciativas que têm de ganhar expressão para que a sociedade se torne mais justa e mais coesa.

 

Enfim, o papel do Estado continuará a ser fundamental, pois sem as transferências públicas através de pensões, reformas e todos os apoios sociais, seria impossível reduzir o impacto da pobreza.

 

PD- Quais são as expectativas para os próximos tempos?

 

AB- Os próximos tempos não se avizinham fáceis, sobretudo na Região, face à estagnação de setores tradicionais, o envelhecimento acelerado, sobretudo nas ilhas de coesão, e ameaças estruturais como a situação que se vive na Base das Lajes. O desemprego elevado será motor para outras fragilidades pessoais e sociais que não apenas a do sustento imediato. Daí que a nossa expectativa e o nosso papel seja o de intervir de forma global, formando, apoiando, fomentando e também dando, quando disso se trata, mas sempre com o objetivo de ajudar a criar condições para que o apoio direto (alimentar, financeiro) seja cada vez mais a exceção e não a regra.

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