Pelo Pe. Teodoro Medeiros
As estórias apontam à eternidade; querem viver e o cinema dá imortalidade a todas… seja aos pistoleiros do Oeste, aos dinossauros, à violência medieval ou à elegância discreta de Marcelo Mastroianni (cujo glamour insuperável e simples é uma dura lição para todos os outros, de Gary Grant a Cruise ou Robert Pattinson).
O recente filme italiano “A ternura” apresenta-nos um reformado irascível e pouco recomendável. É um homem que na cama do hospital agradece à filha a sua visita de forma original: finge dormir para não a ouvir falar. É ele o nosso herói; alguém que carrega o seu passado. É ele que abaixa as defesas diante dos novos vizinhos. O seu gesto final de ternura vale uma ressurreição.
E são estes pequenos filmes que salvam o cinema de si mesmo. E nos salvam a nós, porque colocam ao centro protagonistas frágeis, não consensuais; gente que não deixou o mundo melhor do que o encontrou. O valor de ter um protagonista que é reformado, ou filho de artesão (carpinteiro ou puro mestre das obras); ou pescador, ou crucificado, ou herege da Galileia. Gente que parte em último lugar.
Quando se entra nesta dimensão, não se está apenas a olhar para o já bem passado, a actualizar ou a preservar a memória. Nem a buscar os alicerces da civilização (ou da Europa que de resto não aprecia o diálogo consigo mesma), ou a fazer declarações de princípios, ou insuportáveis sobranceirices de se saber dono desta ou daquela verdade (ou não tivéssemos tido duas, não só uma bomba atómica).
Onde estão estas estórias, onde está o verdadeiro cinema? O verdadeiro filme sobre Jesus são os evangelhos, não temos nada de mais conseguido ou mais artístico. Basta pensar na polivalência de um Pedro por exemplo: Marcos coloca-o lado a lado com Iéchua, no processo de julgamento e condenação à cruz. Um fala só o essencial: diz ao Sumo-sacerdote que é Filho de Deus e cai o Carmo e a Trindade.
O outro esconde-se entre os anónimos, conversa e desconversa, fala demais e reconhecem-no pela pronúncia, fica aflito e usa da velha tática do palavrão e do insulto: que não lhe venham com coisas tolas ditas por uma mulher. Se se quiser passar isto a imagem, tem de se seguir o esquema de “O Padrinho”: uma simultaneidade que faça abrir os olhos ao contraste entre Cristo e a cobardia.
Bem o fez Pasolini, no “Evangelho segundo São Mateus”: a negação de Pedro termina com a câmara ao ombro, escondida atrás de outras pessoas, espreitando de longe o Mestre encurralado, o salvador que se queimou por suas próprias mãos. É quase um plano geral, tudo ao longe, metendo-nos atrás das pupilas de um traidor, doentes da mesma peçonha.
Pense-se num filme de Tarkovsky, “Solaris”, talvez o mais religioso de todos os filmes antropológicos (ou será, ao invés, o mais antropológico de todos os filmes religiosos?): o psicólogo Kris não acredita em nenhum dos fenómenos passados naquele planeta. A sua missão é estudá-los cientificamente, levar uma resposta clara aos seus superiores.
É uma alegoria de quem somos hoje, espíritos rigorosos e qualificados. Assim que se instala na base espacial, porém, Kris vai perdendo a capacidade de observar neutralmente. É assaltado em tudo o que julgava ter; esfumam-se as suas certezas. Estariam os astronautas da base loucos? Se fosse esse o caso, como designar aquilo em que ele se foi tornando? Solaris embrulha-o no seu passado, em tudo o que amara e julgava ter perdido.
Surge-lhe novamente Hari, a antiga esposa, e retomam o amor perdido anos antes. Esta felicidade inesperada aliena Kris, fá-lo abandonar todos os seus planos, rejeitar todos os esquemas. De improviso, a sua vida volta a ser o que ele mais desejava-necessitava-já-esquecera. Em vão luta contra a novidade: envia Hari para o espaço mas ela surge a seu lado no dia seguinte. Entende-se o porquê desta rejeição: a razão da separação dos dois, anos antes, fora a morte desta.
No cinema autêntico, insiste o realizador russo, o espetador não é tanto espetador como testemunha. Ele assiste a algo que lhe é vital e lhe prolonga o seu próprio tempo: torna-o mais rico, amplia-o, fá-lo crescer, acrescenta-lhe mais vida. Não mais lhe será possível ver de fora, escrever um artigo científico adequado e sem ferrugem.
Até porque, contas feitas, o tempo tanto se ri e nos foge como se deixa moldar (ele que há-de desfazer o oleiro com o seu punho).