Pelo Pe. Hélder Miranda Alexandre
A vinda do Papa Francisco a Fátima, no seu centenário, e a canonização dos pastorinhos Jacinta e Francisco, encheram as almas dos crentes, e mesmo não crentes, de uma intensidade extraordinária de ideias, opiniões, sentimentos e vivências inumeráveis. Como afirmou o Presidente da República, o evento ultrapassou as expectativas.
É tempo de dar graças a Deus e a todos os que tornaram possível a concretização deste sonho, mas também tempo de refletir. Que ficará para a História? Que mudanças esperamos na sociedade e na Igreja? Com certeza, mais do que pensamos e podemos contabilizar. O pior que pode acontecer é tudo isto não passar de um simples fogo de artifício mediático. Não há dúvida que fenómeno “Fátima” é cada vez mais central no catolicismo português, e incontornável na Igreja Universal. O Papa deu-nos pistas para uma devoção mais autêntica, e o caminho a percorrer é longo, tão longo como o caminho de conversão de cada coração e das comunidades cristãs.
Não existem dúvidas que a palavra do Papa Francisco constitui uma das poucas vozes de referência, num mundo ocidental vazio de autoridade. Estamos cansados de tão miseráveis lideranças. Por isso, as suas palavras e os seus gestos fazem meditar e repercutem-se em tantos homens de boa vontade.
Francisco dirigiu-se à nação portuguesa como um pecador que veio para um povo de pecadores. E isso quer dizer tudo. Sendo um papa jesuíta, a sua ideia de reforma da Igreja corresponde essencialmente à visão de Santo Inácio. Numa entrevista à revista Civiltà Cattolica, quando Antonio Spadaro lhe perguntou quem era, depois de um silêncio, disse: “não sei o que pode ser a resposta mais justa… Eu sou um pecador, a quem o Senhor olhou”.
A espiritualidade jesuítica é a câmara escura de elaboração profunda das experiências de Bergoglio e do seu ministério episcopal e petrino. Papa Francisco é fruto dos Exercícios Espirituais e a sua visão de reforma da Igreja é radicada na reforma da vida.
Em 2014, na sua homilia na Igreja de Gesù, dirigindo-se aos jesuítas, afirmou: “o coração de Jesus é um coração de um Deus, que por amor, se esvaziou. Cada um de nós, jesuítas, que segue Jesus, deveria estar disposto a esvaziar-se a si mesmo. Somos chamados a este abaixamento: sermos esvaziados”.
Os seus gestos de humildade, que tanto atraem as multidões, não são marketing, são autênticos, na linha deste despojamento tão eloquente. A sua espiritualidade parte do discernimento, numa atitude interior que conduz ao diálogo, ao encontro, a encontrar Deus onde se possa encontrar. Como já escrevera na Evangelii Gaudium, a realidade é mais que a ideia (EG 231-233), e o tempo é mais que o espaço (EG 222-225), por isso há que promover processos, que serão longos, e não cortar cabeças ou conquistar espaços de poder.
Muitos continuam a dizer que é um Papa revolucionário, que vai reformar a Igreja. Nada de mais perigoso! Também quiseram que Jesus fosse assim. A reforma que se propaga nunca se fará em modelos de competência e resultados, mas através de um caminho, que superará as nossas expectativas, à maneira do grão de mostarda a que se compara o Reino de Deus. Como ele mesmo afirma “implica abandonar-se à vontade de Deus, e isto implica renunciar a controlar os processos com critérios meramente humanos”. A reforma da Igreja não é um projeto de ideias claras, como um campo de batalha. Bergoglio não separa o branco do preto, tem a grande lucidez de ver nuances e gradualidades. As ações e decisões estão radicadas no profundo e devem ser acompanhadas de uma leitura atenta, meditativa, orante, dos sinais dos tempos, presentes por toda a parte.
A verdadeira reforma da Igreja acontece no mais profundo do coração humano, não em estratégias políticas. Por isso, nunca a conseguiremos medir, e o processo não começou agora, como muitos pensam. É um caminho de sempre, que jamais terminará. Mas há que ter a coragem de nunca o abandonar, e de ir ao encontro de periferias. Esta é a sua força, a de não nos deixar estagnar.