Pelo Pe Paulo Borges
Há dias lia, num jornal, este pensamento de um Sr. chamado Bento Sampaio: “Verifica-se que todo o ser humano constrói um mundo imaginário, à medida que as suas ideias amadurecem”. Parece que a pessoa está fadada a uma síntese de vida daquilo que foram as suas experiências mais significativas e daí, naturalmente, urdir uma cerca imaginária ou torre blindada à sua volta. O ser humano, na sua essência, necessita de construir a sua biografia através de memórias, é isto que lhe permite montar a sua história de vida. Dar-lhe sentido e perspetiva. Estas memórias são construídas considerando a veracidade dos factos, mas também as fantasias de cada um, o ideal, o que poderia ter sido, o que nunca foi. Isto é o que nos torna únicos, idiossincráticos. Claro está que quanto mais amadurecemos, mais ferramentas possuímos para esta empreitada. Até ao momento final em que tudo se consome, mas nada acaba.
Sem dúvida que estas colagens, tão concretas e reais, nas mentes humanas, são floreadas ou azedadas conforme as inclinações circunstanciais da pessoa.
No entanto, permita-me o Sr Bento, discordar em parte da sua sentença, porque a vida tal como o tempo são por si indefiníveis e trazem em si a marca-de-água da eternidade. As verdades são procuradas exatamente por isso, por serem eternas, sempre idealizáveis, sempre inalcançáveis, utópicas, distópicas, atópicas, como que a dizer-nos que aqui não têm morada permanente. Daí interessa-me passar para a ideia que elaboramos acerca de DEUS.
Qualquer espírito avisado encontra-se, no meio do seu horizonte mental, como um menir gigantesco ou um poderoso objeto cultural – DEUS, envolvido numa espessa urdidura social – a religião.
Deus foi transformado numa espécie de joker que tanto serve para apoiar uma boa jogada como uma marosca indecente. Não há brutalidade ou generosidade que não tenha sido feita em seu nome. Batemos no peito e podemos orar: “nostra culpa”.
O ser humano é um animal de lonjuras e profundidades: não se limita ao que existe, tem sede de explorar os horizontes internos das coisas ou os horizontes abissais de si próprio.
Bem afirmou a filosofia antiga, o homem é “Bestia cupidíssima rerum novarum”: animal ansiosíssimo (sitibundo, sequioso) por coisas novas.
É escandaloso comprovar quantas pessoas fingem certezas que não têm, quando falam das suas crenças. Quando digo “crenças” refiro-me a todo o tipo de convicções e não só a religiosas.
A inteligência, ao transformar a realidade em símbolo, afirma um postulado chocante: aquilo que vemos é só metade do que existe. O visível é a chave do invisível.
A religião é uma invenção que, a partir do mundo visível, tenta encontrar a suposta metade do símbolo, da moeda quebrada. À vivência que une ambas as metades, que permite passar da segurança do visível à segurança do invisível, chamamos fé.
Já nos dizia o sábio mestre de Nazaré: fé autêntica e saudável, move montanhas. Sabedoria das sabedorias, sempre querida pela alma boa que não se dobra perante as dificuldades e como resposta a tal virtude, deseja estar sempre à altura do que lhe acontece e disso fazer prova de vida.
Sem dúvida que andamos no cotovelo da história e o incerto amanhã é cada vez mais certo.
O único seguro que temos é o momento presente, o agora, o já. Esse ninguém nos tira. É nosso. Só temos que o reclamar como dom, por isso é que é presente.
No entanto, o hoje só por si, não faz tecido, não constrói texto, não elabora história, permanece singular. A manta de retalhos da nossa história está serzida pelos fios do passado remoto e recente. Aí entram as memórias, que é do que somos feitos. Daí não podemos fugir.
Em pleno século XXI, no dealbar de mais um ano, urge pensar que não podemos fugir ao ritmo implacável dos ponteiros do relógio, que como agulhas vão tricotando o tempo, ao compasso do tic-tac, que nos mói e consome a frágil linha da vida… desta vida que se quer sempre renovada. Isto tem a força da esperança, menina dos olhos verdes, como lhe chamou Mário Quintana. Eles passarão, eu passarinho.
*O Padre Paulo Borges é o responsável pela Comissão Diocesana da Pastoral da Saúde e Capelão do Hospital do Divino Espirito Santo, em Ponta Delgada