Por Carmo Rodeia
A palavra de Deus funciona quase sempre como um espelho onde encontramos histórias com as quais nos identificamos e que acabam por traduzir, de forma muito concreta, aquela que é a vontade de Deus em inspirar a nossa vida, de a transformar ou de a iluminar.
Para isso, também, é preciso um esforço da nossa parte: uma entrega total e sem reservas a essa palavra, não no sentido de um entusiasmo inicial ou de acharmos graça a essa palavra, que deixamos para os outros aplicarem. A palavra de Deus convoca-nos para uma entrega integral, sem meias tintas.
A romancista norte americana Flannery O´Connor, no seu diário, afirmou que crer era muito mais duro e difícil do que não crer. E tinha razão. Porque a fé exige um esforço continuo de oração, de despojamento e de desconstrução.
“Vai onde não possas/ vê onde não vês/ escuta onde não ressoa/ e assim estarás onde Deus fala”, o que não deixa de ser um desafio difícil, que se impõe a todos mas que só alguns conseguem alcançar.
Santa Teresa de Calcutá, quando em 1979 foi agraciada com o Prémio Nobel da Paz e depois convidada a dirigir-se à Assembleia Geral das Nações Unidas, apresentou-se como uma pobre irmã, que reza a Deus, que lhe enche o coração de amor, que depois transporta pelo mundo fora, junto de quem encontra, sem olhar à raça, ao credo ou à condição social.
Não sendo uma transcrição literal das palavras da nova santa, que o Papa Francisco proclamou este domingo, na Praça de São Pedro, esta afirmação traça um estilo de vida e uma entrega que muito mais do que incomum pela sua simplicidade representa um exemplo e um testemunho vivo da misericórdia divina. Incompreensível porventura mas que se apresenta como um exemplo do caminho da transformação e do despojamento progressivo.
Gosto particularmente da resposta que Jesus dá ao discípulo que lhe diz: “Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores.” E Jesus responde-lhe: “As raposas têm as suas tocas, as aves os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.
Foi isso que Santa Teresa de Calcutá ouviu e concretizou. Por isso, é uma nómada do nosso tempo, que viverá pela sua santidade e não por ser um ícone pop.
O que é que ela tinha? O coração cheio de amor de Deus. E partia em busca dos outros, fazendo da proximidade a sua arma contra a indiferença e a falta de dignidade a que eram votados milhares de indianos. Nunca deve ter feito contas nem sequer buscou um prémio. Aliás, nos seus escritos privados e, sobre o Céu, não tinha qualquer expetativa nem sequer de encontrar uma nova luz. A sua missão era na terra: fazer como Jesus, não para o copiar mas porque o seu coração estava cheio do amor Dele, transportando-o para os outros.
Centrada num dos primeiros mandamentos- Amar o outro como se ama a si mesmo- Santa Teresa distribuiu ajuda sob a forma de ternura e de encontro; misericórdia e compaixão. Nunca menos do que isso.
É, sem dúvida, um exemplo concreto da misericórdia que deve nortear a ação de qualquer cristão. Olhando para ela até parece fácil. Quem sabe a possamos imitar mais em vez de nos ficarmos pela admiração… afinal já é Santa e não apenas um ícone da sociedade moderna. Felizmente entre a sua vida e a sua morte até à canonização tivemos tempo para apreciar a sua entrega, em liberdade e por inteiro.