Pe Paulo Borges, responsável pela pastoral da saúde, sublinha importância do acompanhamento de doentes e familiares
No próximo dia 13 de março a diocese de Angra assinala o dia diocesano do doente. Uma oportunidade para o Sítio Igreja Açores falar com o responsável diocesano pela pastoral da Saúde. A começar pela ordem do dia: a Eutanásia. O sacerdote reconhece a pertinência do tema embora considere que quando alguém verbaliza que quer morrer, “é porque não encontra sentido para o que está a sentir ou porque se sente um peso para os outros”.
O Pe Paulo Borges fala do sofrimento, do luto, da dor e sobretudo da vida. Com qualidade, terapêutica e espiritual.
Sítio Igreja Açores- Está na ordem do dia a questão da Eutanásia e do suicídio assistido, por causa do Manifesto que foi publicado na imprensa há cerca de um mês. O tema não é novo mas volta à primeira página. Em primeiro lugar, com que ideia ficou depois de ler o manifesto?
Pe Paulo Borges- O documento sustenta-se numa argumentação bastante sensível, porque reclama direitos e liberdades que, a meu ver, não podem ser olhados unilateralmente, sob pena de nos entrincheirarmos num dos lados da barricada, como se de uma guerra se tratasse. Julgo ser imperioso esclarecer e informar as pessoas, não esquecendo, claro está, o nosso património antropológico e as suas mais elevadas referências éticas sobre o valor inapelável da vida em todas as suas dimensões.
Sítio Igreja Açores- Lida diariamente com o sofrimento e um dos aspetos que o manifesto apresenta como argumento é justamente o sofrimento que nunca se deve sobrepor à liberdade de manter uma vida digna, fora do sofrimento. É plausível este argumento?
Pe Paulo Borges- O argumento é demasiado forte para não ser levado a sério e nem se pode negar a sua eficácia. Pois ao eliminar a pessoa, estaremos também a acabar com o sofrimento, mas parece-me uma reação um pouco primária. O sofrimento termina pelo menos até certo ponto porque, depois aí entram as questões dos lutos e perdas tão necessários elaborar por relação aos mais próximos que ficam.
No entanto, a meu entender o problema é mais profundo pois o sofrimento do outro incomoda-nos e parece-me que estamos pouco preparados para lidar com as questões da vulnerabilidade e finitude que fazem parte daquilo que é ser humano.
Sítio Igreja Açores- Alguém já lhe pediu diretamente para morrer? O que é que lhes diz nessa altura?
Pe Paulo Borges- Normalmente, esses “gritos de desespero” são pedidos de ajuda nos momentos de maior desamparo. A partir daí, a atitude mais assertiva será através de um acompanhamento de proximidade, escuta ativa e terapia da compaixão percebendo o que se passa com a pessoa em causa e ir, com ela, à origem do seu mal-estar, oferecendo-lhe uma proposta concreta dos melhores cuidados de conforto possíveis e adequados. Por exemplo, quando alguém verbaliza que “quer morrer” é porque não encontra sentido para o que está a sentir ou até muitas vezes sente-se um peso para os outros. A nossa resposta deverá ir no sentido de impedir a “cultura do descartável” que o papa Francisco tão eloquentemente fala.
Sítio Igreja Açores- Como é que se ensina alguém a viver com o sofrimento sabendo que a vida que tem à frente não passa disso e sobretudo há uma esperança de vida muito curta?
Pe Paulo Borges- Não existem receitas mágicas. Lidar com o sofrimento é algo que se aprende na vida e com a vida. Viver é aprender a morrer e vice-versa. A vida é uma escola de sabedoria.
No entanto, em todo este processo, julgo ser pertinente resgatar o espetro luminoso do sentido redentor que o sofrimento pode ter dentro do contexto vital daquela existência que agora termina.
Quando falo do aspeto redentor do sofrimento não tem a ver com o valor cármico da existência, equiparável à contabilidade entre deve e haver, mas santuário interior onde a pessoa se encontra
consigo mesma e experiencia, como num rasgo de luz (espécie de relâmpago) a verdade de si mesmo. Ou seja, o sofrimento transporta consigo uma dimensão de amadurecimento e crescimento onde pode acontecer a catarse possibilitando o agigantar da alma como trabalho interior, a que podemos chamar resiliência. Neste lugar sagrado lê toda a sua história de forma narrativa, como um tecido e não uma manta de retalhos. Presenteia-se com a luz da sua essência e aceita com humildade o esplendor da sua verdade. Em linguagem sacramental e de fé: Concelebra a última eucaristia e comunga o Viático Eterno.
Em última análise, não se trata do fim da vida, mas do percurso de uma vida onde até a morte é para ser vivida na sua plenitude. Pois, a vida não é para ser consumida, mas consumada.
Sítio Igreja Açores- Como é que se pacificam estas pessoas? Elas e os familiares?
Pe Paulo Borges- Ter sempre presente que as pessoas envolvidas neste processo estão a viver um luto irreparável. Trata-se de uma perda onde as emoções ganham força consoante o vínculo que se tem com a pessoa que morre.
O primeiro passo dessa via dolorosa será consciencializar que a morte faz parte da vida. Daí a importância de realizar despedidas, aceitar a pessoa na totalidade da sua narrativa biográfica, satisfazer desejos, desbloquear medos e se for o caso, ritualizar o pleno sentido da vida através da fé que a orientou.
Sítio Igreja Açores- Não há coisa mais certa nesta vida do que a morte. No entanto, sabemos, que este assunto é um tabu. E como se percebe quem está perto dela não a quer…que caminho doloroso é este do envelhecimento, da doença, do ficar só e abandonado quando muitas vezes é nestas alturas que mais se precisa do outro?
Pe Paulo Borges- Este não é um caminho fácil, mas terreno sagrado onde somos convidados a “descalçar as sandálias” da nossa autossuficiência e percorrer com a pessoa a “Via-Sacra da Fé” com cinco estações bem definidas, segundo o modelo consagrado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross: negação, clamor ou revolta, negociação, depressão e aceitação.
Creio que uma das chaves mais preciosas da espiritualidade autêntica é o exercício saudável, não mórbido, do luto por si mesmo. Aqui, não resisto pedir emprestado algumas palavras do poema “Requiem por mim” de Miguel Torga: “Aproxima-se o fim. / E tenho pena de acabar assim… / Inválido do corpo / E tolhido da alma… / Longo foi o caminho e desmedidos / Os sonhos que nele tive. / Mas ninguém vive / Contra as leis do destino… / Rio feliz a ir de encontro ao mar / Desaguar, / E, em largo oceano, eternizar / O seu esplendor torrencial de rio.”
Sítio Igreja Açores- O debate sobre a Eutanásia vai ser longo mas vai fazer-se até por questões ideológicas que espelham a composição do parlamento. É a favor de um referendo sobre este assunto, tal como se fez para o aborto?
Pe Paulo Borges- Penso que a vida humana não é referendável. Aborto e eutanásia são incomparáveis. A eutanásia é uma questão de alta intensidade, mas baixa frequência. Ao contrário da
eutanásia o aborto já era praticado ilegalmente, antes de ser referendado. Deveras preocupante é, para quem vive no mundo da saúde e da doença, os conflitos éticos que se colocam a certos procedimentos que se revelam distanásicos. Aqui quero afirmar categoricamente que a distanásia é que é crime, punível por lei.
No entanto, estas questões quentes e complexas que, sazonalmente aparecem a lume nas primeiras páginas da comunicação social, pretendem desviar a atenção das agendas parlamentares vazias ou então cheias de miopias político-partidárias.
Sítio Igreja Açores- Não resisto a perguntar-lhe frontalmente, mesmo prevendo qual vai ser a sua resposta. Atendendo aos casos particulares que certamente conhecerá melhor que ninguém, admite a possibilidade da eutanásia, não como prática generalizada mas como possibilidade?
Pe Paulo Borges- A eutanásia e o suicídio assistido não se podem considerar como prática terapêutica. Lembramos também que a equipa de saúde, dedicada e competente, tem por norma a boa ética que se traduz na melhor prática médica. Ou seja, não iniciar ou mesmo interromper tratamentos que se revelem agressivos, ineficazes, desadequados, fúteis e desproporcionados evitando assim o extremismo do encarniçamento técnico que é considerado má prática clínica e fere os códigos deontológicos dos profissionais de saúde prolongando, deste modo, já não a vida humana da pessoa mas o seu processo de morte, o que é eticamente inaceitável. A isto chama-se ortotanásia.
Vejamos que na Holanda a maior parte dos pedidos, após analisados com o doente, não são consumados porque, verifica-se que se trata de pedidos de ajuda. Neste contexto, ficamos com uma franja muito pequena de pessoas que ficam com o seu desejo inicial de morrer. Também é de notar que cerca de 70% desses pedidos de eutanásia ocorrem por sofrimento psicológico e não físico. Concluímos que é o medo de sofrer e não o sofrimento que está em causa.
Em última análise, se esta prática vier a generalizar-se, mesmo com o suporte legal, pode ferir de morte a relação de confiança entre médico-paciente. Pois, objetivo principal do cuidado médico é o de conseguir para a pessoa doente, em fase terminal ou incurabilidade, o maior conforto e bem-estar possíveis em todas as dimensões do seu ser.
Sítio Igreja Açores- Vamos ter um debate certamente profundo e prolongado sobre o assunto. Qual é que acha que deve ser o papel da igreja neste debate?
Pe Paulo Borges- A igreja não é fim em si mesma, mas continuadora da missão do seu Mestre e Senhor, que é Jesus Cristo que na sua atividade messiânica inaugurou a terapia da proximidade e da compaixão à semelhança do samaritano bom, curando e cuidando de todos os que mais precisavam. Portanto, não faz sentido o aspeto dolorista e a mortificação do corpo como méritos para a salvação. O próprio Jesus nos salvou não porque ganhou o campeonato da dor, mas como viveu e morreu fazendo da sua vida dom.
A Igreja deve estimular uma postura de diálogo com os problemas e a vida das pessoas do seu tempo, oferecendo à humanidade a força ressuscitadora da esperança e plataformas dialogantes de encontro fecundo que resgatem o inalienável valor espiritual e humanizador da pessoa.
Sítio Igreja Açores- Trabalha diariamente com vários casos. Uns mais graves do que outros. Mas todos a precisarem de atenção. Do ponto de vista da saúde quais são hoje os grandes e principais problemas do serviço regional de saúde?
Pe Paulo Borges- Apenas poderei responder que do ponto de vista ético, o SRS deverá estabelecer estratégias satisfatórias que triangulem entre o que é medicamente possível, o que é humanamente justificável e o que é economicamente sustentável.
Sítio Igreja Açores- A doença remete-nos para um estado de vulnerabilidade e há doenças que às vezes são pouco compreendidas e que hoje são um sinal dos tempos. Falo das doenças do foro psiquiátrico, particularmente a depressão. Sente que há cada vez mais gente com este problema?
Pe Paulo Borges- Parece-me que a doença do século XXI não é a depressão, mas sim o cancro. Pois o cancro está cada vez mais a tornar-se tendencialmente uma doença crónica. Todas as doenças crónicas podem eventualmente transformar-se num fator que leva à depressão. A OMS preconiza que o ser humano insere-se dentro de um modelo biopsicossocial e espiritual e portanto não se pode restringir apenas a uma dimensão. A meu ver, a depressão e outras doenças do foro psiquiátrico são uma armadilha em que a pessoa cai, fruto de diversos fatores. Daí que qualquer ajuda terapêutica neste sentido terá que ter em conta o contexto vital e integral da pessoa em causa.
Sítio Igreja Açores- A sociedade, e os serviços de saúde, em particular estão aptos a lidar com este novo quadro clinico que a sociedade oferece?
Pe Paulo Borges- Como deve imaginar, não possuo dados concretos de conhecimento e por isso não me sinto minimamente à vontade para dar uma resposta cabal a esta questão.
Sítio Igreja Açores- Vamos comemorar o dia diocesano do doente. O papa Francisco na mensagem para o dia mundial do doente pede atenção aos doentes e famílias. À igreja não se pede que apresente um programa político de ação. Mas pede-se que esteja atenta e sinalize. Da sua atenção quais são os caminhos que devem ser tomados em consideração?
Pe Paulo Borges- A Comissão Diocesana da Pastoral da Saúde tem como principais objetivos trabalhar para que todos consciencializem a dimensão terapêutica da espiritualidade, aliás como já é enfatizado pela OMS. Desenvolver estratégias com os doentes e seus familiares, juntamente com os profissionais de saúde, de terapia de acompanhamento humanizador e espiritual. Diligenciar para que o acompanhamento espiritual e religioso chegue a todos os que o peçam e dele precisem, como indispensável ao processo terapêutico da cura e cuidado à pessoa doente.