Por Carmo Rodeia
Nunca apreciei a passagem de ano. Particularmente, aquela necessidade que todos nós acabamos por experimentar, sobretudo quando somos mais jovens, ligada a uma certa obrigatoriedade de estar radiante ou ser feliz em função de uma data que o calendário regista.
Mas continuo hoje, como sempre, a comer as doze passas e a formular doze desejos em forma desordenada, enquanto aguardo pelo telefonema dos irmãos ou da mãe, quase sempre longe e este ano, porque a idade e as circunstâncias assim o ditam, também dos filhos mais velhos. À espera daquele conforto badalado de votos de “bom ano, com muita saúde, paz, amor, alegria… e algum dinheiro, porque as contas também precisam ser pagas”.
Comemoramos o Ano Novo como expressão de vida nova, mas somos incapazes de comemorar a semana nova que começa a cada domingo, esquecendo-nos que há 365 dias de ilusão, irmã de esperança.
“Vence a indiferença e conquista a paz”. Este é o título da Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz, a terceira do Papa Francisco, que assinala sempre o começo de um novo ano. A indiferença em relação aos flagelos do nosso tempo é uma das causas principais que prejudica a paz no mundo. E a nossa paz interior. Porque a indiferença não é apenas para com os que estão longe e distantes. Começa com os que estão próximos.
A indiferença hoje é, frequentemente, associada a várias formas de individualismo que produzem isolamento, ignorância, egoísmo e isso leva ao desinteresse, muitas vezes por distração.
Os padres do deserto diziam que “Só há um único pecado: é a distracção”. Desencontramo-nos porque nos distraímos e acabamos por perder o sentido do essencial, do prioritário, do outro e construímos montanhas de coisas e não nos construímos a nós mesmos, como alerta o Pe Tolentino Mendonça, num dos seus textos da Mística do Instante.
Adiamos, adiamo-nos e adiamos os outros, construindo, sem nos darmos conta, um exilio que nos pode apaziguar momentaneamente mas que nos deixa vazios. Um exilio que nos distrai mas que não nos conforta; apenas nos deixa aquém de nós mesmos. Quantas vezes lidamos connosco próprios, numa idealização tal que nunca aterramos verdadeiramente na realidade?
“Quem me livrará deste corpo de morte, que não faço o bem que quero e faço o mal que não quero?”. Todos sentimos, como São Paulo, esta forma paradoxal em que a nossa existência se desenvolve.
Por isso, a expressão “ano novo, vida nova” ganha um significado diferente se levada a sério. Não porque haja uma imposição administrativa do calendário mas porque implica uma nova oportunidade para ver e viver o que é essencial, abrindo o coração à alegria que nos visita cada dia, em cada momento, feito de pequenas coisas.
Aceitar a nossa pequenez, sobretudo as nossas limitações, pode ser um começo para esta vida nova. Esperamos sempre Deus no máximo e esquecemo-nos que ele nos visita no mínimo. Porque temos a mania da grandeza e a petulância de querer ser grande, esquecemo-nos destas duas premissas: a nossa pequenez e a grandeza de Deus.
Quando derem as 12 badaladas, indicando que temos ano novo, vou continuar a comer as passas, mas formularei apenas um desejo: ser fiel ao Amor de Deus. E, com Ele, procurarei vencer a indiferença…
Feliz 2016.