Pelo Pe Hélder Miranda Alexandre
Nem todo o pecado é delito, mas todo o delito é pecado. Esse é um princípio que impede que se penalize todos os pecados, mas também que os delitos não sejam consentidos no seio da comunidade cristã. Já na Igreja dos Actos dos Apóstolos encontramos situações em que os próprios Apóstolos tiveram de intervir para emendarem abusos e corrigirem erros com o intuito de que o bem comum não fosse ferido. É o caso, por exemplo, da fraude de Ananias e Safira (Act 5, 1-11).
A Igreja possui a particularidade de usar o sacramento da reconciliação, para além do processo penal, para corrigir o delito e perdoar o pecado. Rigorosamente, não existem pecados reservados devido à célebre questão do poder de ordem e de jurisdição. Desde que exista arrependimento e vontade de mudança, todos os pecados são perdoáveis. No entanto, existem delitos, que se chamam censuras, que podem ser remitidos por meio deste sacramento sem haver necessidade de recorrer a um Tribunal. Contudo, essa remissão só é feita pela Suprema Autoridade da Igreja, para a Igreja Universal, ou pelos Bispos Diocesanos e seus penitenciários, para a Igreja Particular. A novidade deste ano santo está no facto de que se estende esse poder a todos os confessores para o delito do aborto ou aos missionários da misericórdia para os casos reservados à Sé Apostólica.
O can. 1398 determina: “Quem tenta o aborto, obtido o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”. Esta normativa implica que existe aborto quando o feto é imaturo, isto é, dentro dos primeiros 180 dias, depois da conceção. Distingue-se igualmente do homicídio ou da craniotomia. A interpretação autêntica de 1988 clarificou que, por aborto, se deve entender não somente a expulsão do feto imaturo, mas também a morte do feto procurada por qualquer modo, ou em qualquer momento da conceção. O delito do aborto acontece, por isso, quando se suprime um feto imaturo, por qualquer modo ou meio, mesmo no seio materno, e independentemente do tempo da conceção. Para a avaliação do mesmo, é necessário que seja um acto effectu secuto. Por isso, não bastam as tentativas falhadas, mas que haja certeza moral de que tenha havido aborto depois, e como consequência, da ação realizada. Segundo os autores, as práticas de fecundação artificial, com supressão de vários embriões, ou embriotomia, não se podem incluir na matéria deste cânon, dado que o legislador não as considerou e as leis penais são de interpretação estrita.
A excomunhão é imediata. Significa, por exemplo, que o sujeito não pode participar ou realizar sacramentos, ou exercitar funções ou ministérios eclesiásticos.
Por direito, a remissão deste delito é reservada ao Bispo Diocesano, ao seu penitenciário ou a quem ele delegue. Ora, numa carta enviada a D. Rino Fisichella, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, o Papa Francisco determinou o seguinte: “decidi conceder a todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado. Os sacerdotes se preparem para esta grande tarefa sabendo conjugar palavras de acolhimento genuíno com uma reflexão que ajude a compreender o pecado cometido, e indicar um percurso de conversão autêntica para conseguir entender o verdadeiro e generoso perdão do Pai, que tudo renova com a sua presença”.
Por isso, de 8 de Dezembro de 2015 a 20 de Novembro de 2016, todos os confessores podem remitir este delito. O mesmo será facultado aos Missionários da Misericórdia, como se determina na Misericordiae Vultus, para todos os casos reservados à Sé Apostólica, como a profanação das espécies eucarísticas (can. 1367), a violência física contra o Romano Pontífice (can. 1370), a absolvição do cúmplice no pecado contra o sexto mandamento (can. 1378 §1), e a violação do sigilo sacramental da parte do confessor (can. 1388 §1). O mesmo se entende no que respeita ao Decreto da Congregação para a Doutrina da Fé, mediante o qual se aplica a mesma excomunhão a quem regista por meio de instrumentos técnicos, ou divulga, por meio de instrumentos de comunicação social, o que é dito pelo confessor ou pelo penitente.
Esta decisão do Papa Francisco não é inédita. Os anos santos têm por tradição este tipo de concessões e faculdades, para além das indulgências plenárias. O ministério da penitência sacramental é exercitado desde a origem com o intuito de impedir que tais atos se tornem públicos, protegendo, deste modo, a boa fama do fiel, o bem comum, e prevenindo o escândalo que perturba gravemente os mais frágeis na fé. Como escreveu Santo Agostinho, a certeza da reconciliação é um ato da graça divina, e somente nessa se compreende o poder concedido à Igreja ao longo dos séculos: «A alma, que tinha morrido pelos seus pecados, renasce na Igreja, para que reviva em Cristo, no qual fomos salvos».