Por Carmo Rodeia
O primeiro verso da Divina Comédia de Dante diz mais ou menos assim: “A meio do caminho desta vida/me vi perdido numa selva escura”.
O verso aplica-se a qualquer um de nós, sobretudo aos da chamada meia idade, cujo o entusiasmo inicial da juventude já foi ultrapassado e os problemas da vida se tornam cada vez mais irresolúveis e dificeis de transpor. Tornamo-nos amargos, descrentes e pessimistas. Arrependidos do que não fizemos, tristes pelo que não poderemos fazer e incapazes de olhar para o hoje como se fosse o melhor tempo.
Este entorpecimento que sentimos na vida muitas vezes contagia a fé e abala-a. Continuamos crentes mas pouco praticantes. As injustiças do quotidiano, as vicissitudes da vida, a voragem dos dias fazem-nos esquecer do outro e portanto de nós mesmos.
Julgamos mais do que compreendemos; excluímos mais do que acolhemos; dizemos mais do que ouvimos; guardamos mais do que partilhamos.
Vem isto a propósito, ou talvez não, do novo ano pastoral que agora começa na diocese de Angra.
O Bispo, D. António, interpela-nos a sermos “misericordiosos como o Pai” seguindo o repto lançado pelo Papa Francisco ao declarar o próximo ano como o Ano Santo da Misericórdia, “Não apenas com a esmola, mas desencadeando um processo de autêntica promoção humana e social”.
No dia da apresentação do ano jubilar, o Papa lembra que pensou muitas vezes no modo como a Igreja pode tornar mais evidente a sua missão de ser “testemunha da misericórdia”. E logo responde “é um caminho que começa com uma conversão espiritual; e devemos fazer este caminho. Por isso decidi proclamar um jubileu extraordinário que tenha no seu centro a misericórdia de Deus”.
Na ocasião, o Papa defendeu que “ninguém pode ser excluído da misericórdia de Deus” e que a Igreja “é a casa que acolhe todos e não recusa ninguém”.
“As suas portas estão escancaradas para que todos os que são tocados pela graça possam encontrar a certeza do perdão. Quanto maior é o pecado, maior deve ser o amor que a Igreja manifesta aos que se convertem”, realçou.
A misericórdia como critério de avaliação da vida da igreja, e portanto de todos nós cristãos, que somos e fazemos igreja é, sem sombra de dúvida a grande mensagem do Papa, tão inspirado no jeito e na forma de ser de Jesus.
Tal como o Papa, D. António exorta-nos a sairmos em missão, a peregrinar neste novo ano, em direção a uma “nova etapa evangelizadora”.
Sair em missão, é sairmos de nós mesmos, é deixar cair juízos, preconceitos, calculismos, invejas e ambições pessoais. É colocarmo-nos ao serviço do próximo.
Quando os discípulos se perguntavam qual de entre eles era o primeiro, Jesus respondeu que quem quisesse ser o primeiro deveria colocar-se ao serviço dos outros. Apesar da resposta assertiva, isso não deixou de o preocupar. E, também, não nos deve fazer descansar a nós.
Saber que devemos estar ao serviço é razoavelmente fácil para um cristão. Dizê-lo, não será menos. Resta é saber se seremos capazes…de entrar de corpo e alma neste caminho de reconversão.
Ser testemunha da Misericórdia é ter esta disponibilidade, aliviada de tentações e de egoísmos. É difícil? Pois claro que é! Mas “só as criaturas que sofrem são dignas de viver”, como conta Raul Brandão no seu último livro “O pobre de Pedir”. Pelo menos, temos o dever de tentar…